Entre o Céu e a Terra - Entrevista Oneide Bobsin

Entre o Céu e a Terra promove o diálogo e o respeito às nossas diferenças, consagrando a diversidade cultural e religiosa do Brasil.

Conexão Unisinos - Comissão da Verdade 05/04/14

Entrevista no estúdio busca entender a atuação da Comissão da Verdade, criada com o intuito de reconstruir a história do país no período da ditadura militar. Participa da conversa, Oneide Bobsin, professor e reitor da Faculdades EST (entre 2007-2014) e membro da Comissão Estadual da Verdade (entre 2013-2014).

Ecumenismo

Entrevista fala sobre a importância da confraternização entre as igrejas cristãs através do diálogo inter-religioso. Os convidados para este bate-papo são: o Pe. José Ivo Follmann, sociólogo e vice-reitor da Unisinos e Oneide Bobsin, professor de Ciências da Religião e reitor da Faculdades EST (entre 2007-2014).


Luteranices é um podcast de "alma luterana" sobre o mundo e para o mundo. Neste episódio, conversamos com o pastor, professor doutor Oneide Bobsin, que é mestre em Ciências da Religião e Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1992). Oneide Bobsin é professor titular da Faculdades EST, atuando principalmente na área de Ciências da Religião. Foi Reitor da, então, Escola Superior de Teologia e possui extensa publicação acerca de fenômenos religiosos brasileiros e análises teóricas da religião. 


RELATOS (A) FIADOS I - MEMÓRIAS*

ADOÇÕES SACRAMENTADAS

Nossa bisavó Carolina Meier, morta acerca de 50 anos, ficara viúva logo após o seu casamento. Para não ficar desamparada o seu sogro resolveu transgredir as regras e doou um pedaço de terra para que pudesse tocar a vida. Além disso, buscou numa vila vizinha um peão para ajudá-la nas lides da roça. Quando ele chegou, ela disse para o seu ex-sogro: o que farei com um raquítico? Recebeu a resposta: é só dar uns pratos de feijão, que ele ganha força. E talvez tenha ganhado muita força, pois em pouco tempo Carolina passou a viver com o Silva Porto, filho de portuguesa e de pai afro-brasileiro. Tiveram três filhas, uma das quais foi nossa avó materna, que nunca revelou o seu cabelo encaracolado. Sempre com lenço sobre o coque, como se fosse um véu muçulmano.

Vovó Carolina, como era conhecida, cedo ficou viúva novamente e nunca mais casou. Antes da segunda viuvez adotaram uma criança negra em tenra idade, conhecido como Pida, talvez Elpídio. Conheci o Pida em 1972, quando o nossa bisavó, estava na casa da sua filha Lydia da Silva Porto. Ela havia tido um derrame e sobreviveu por meio ano. Nesse período recebia visitas, inclusive do Pida que veio se despedir de sua mãe do coração. Era comerciante de sapatos em Porto Alegre.

A exemplo de vovó Carolina, minha avó Silva Porto, sem sobrenome de Bobsin, também adotou uma menina. Contava a nossa mãe que veio raquítica e com a barriga cheia de vermes. Sua mãe havia morrido e o pai Eberhardt, sem condições materiais de cuidar dos filhos e das filhas, doou-os a famílias conhecidas da vizinhança. Conheci de relance os irmãos e a irmã da tia adotiva que ainda vive em Terra de Areia. Cabe destacar que meu avô paterno ficou órfão com pouco tempo de vida e fora criado pela sua avó viúva, nascido Becker, a qual segunda a minha mãe recebia a visita constante do pastor Gustav Schreiner. Vinha de talar e só conversava com Cristina em alemão. Suponho que vem destas conversas a influência sobre minha mãe de ideias pietistas. Schreiner foi preso pela polícia de Getúlio Vargas e a casa pastoral se tornou numa subdelegacia durante a Segunda Guerra Mundial.

Do lado de meu pai também houve uma adoção. O senhor Trespach ficou viúvo e distribuiu as filhas e os filhos com as famílias da vizinhança e com parentes. Então, tínhamos um tio adotivo da minha idade. Sua mãe era Steinmetz. Ficou na casa de meus avós paternos até os 18 anos, quando partiu para a periferia de Gravataí onde estavam outros irmãos mais velhos. Aprendeu de meu avô paterno que alguém se faz homem bebendo uns tragos de cachaça, o que pode ter gerado um câncer que o matou aos cinquenta anos.

Lembro que um dos critérios de adoção se baseava no compromisso de batismo com afilhados e afilhadas. Padrinhos e madrinhas – pequenos pais e pequenas mães - assumiam a criação e a educação na ausência do pai e da mãe. Talvez não fosse único critério de adoção, mas decorria do compromisso batismal. Assim, num tempo em que não havia órgãos públicos que cuidassem de tais crianças, a Comunidade civil e religiosa fazia o papel de uma rede social que acolhiam órfãos, antecipando-se ao Estado ausente, como em muitos outros lugares marcados pela vulnerabilidade social.

* Por sugestão do confrade Marcos Witt e do pastor Zeca (Leonídio Gaede) fui encorajado a escrever memórias da presença evangélico-luterana e teuto-brasileira no Vale Três Forquilhas, área rural do Litoral Norte do RS. São memórias da Tradição Oral da família. Pretendo escrever um relato mensal sobre lembranças a partir de 1960, quando tinha cinco anos. (A) FIADOS, porque lembra conversas fiadas do senso comum cuja fonte é a tradição oral de família extensa e de seu entorno. Longe do pensamento positivista, não precisamos de fatos para que uma conversa seja "verdadeira". Aprendemos da fala divina já no início do Gênesis que ela cria os seres e o mundo. Também em João 1 é anunciado que o Verbo se fez e faz carne. Nossas frágeis memórias recontadas aqui e acolá vão tomando corpo social, superando, assim, o isolamento e protegendo vidas frágeis.


Oneide Bobsin – São Leopoldo, Janeiro de 2024.


RELATOS (A) FIADOS II - MEMÓRIAS

O PASSO DO CEMITÉRIO

Por volta do ano de 1900 e nas primeiras décadas do século XX, dentre algumas enchentes, uma delas revolveu de seu lugar o cemitério construído pelos alemães chegados em 1826/27 ao Vale Três Forquilhas.

Na minha infância e juventude ouviam-se ainda muitos relatos sobre mortos insepultos decorrente do rio que arrasou o cemitério. Avós contaram que os mortos eram sepultados ali onde as águas turvas e revoltas deixavam os caixões com ou sem corpos. Logo, o que veio a ser o potreiro da propriedade de meus avós e, mais tarde, de meu pai e minha mãe, serviu de cemitério para muitos, como outros lugares mais distantes.

Como o velho pastor Voges fora sepultado no cemitério revolvido pelas águas, seu esquife chegou perto do templo onde atuara por mais de seis décadas exercendo uma autoridade inconteste. Os amigos do velho pastor diziam que ele estava voltando para acabar com os conflitos decorrentes de sua ausência. Mas os opositores ao pastor acreditavam na "ordem natural" das coisas. Como outros caixões, as águas turvas do rio fizeram novos traçados e deixaram os corpos em qualquer lugar, inclusive em galhos de árvores.

O lugar onde existira o cemitério tornou-se uma passagem entre Guaianazes, distrito de Torres, hoje Três Forquilhas, e Itati. O templo evangélico fica em Itati, ao lado da antiga casa pastoral de Voges. A Vila Itati tinha o templo, casas comerciais, subprefeitura, escola e um prédio dos Becker transformado no primeiro hospital, onde residimos por dois anos porque a nossa mãe fazia refeições para os doentes. Logo, havia intensa passagem de pessoas entre o lado de Torres para o de Osório. E o Passo ficou famoso por suas aparições, especialmente à noite.

Ao final da tarde, depois das lides na roça, homens vinham pelo Passo fazer comprar nos armazéns dos Becker e dos Brusch, menos de cem metros distantes um do outro. Também se formavam rodas de conversa onde circulam de mão em mão os lisos de cachaças. Além de um lugar de compras, as vendas se tornavam espaço de sociabilidade masculina, enquanto as mulheres, em casa, preparavam o jantar e tratavam do gado, porcos e galinhas. Quando retornavam para as suas casas já era escuro.

Por ali passavam tomados pelos tragos e por medo das almas. Uma grande folha de caeté molhada de sereno em noite de lua cheia, balançada pela brisa, se transformava em assombração no Passo do cemitério. Jovens que vinham tarde da noite das casas de suas namoradas aos sábados, viam pequenos cachorros se tornarem tão grandes como os seus cavalos. Meus parentes, que levantavam cedo para buscar as vacas nos potreiros para a ordenha, viram fantasmas de branco. Diziam que minha vó Silva Porto, que veio de outro lugar do Vale a partir do casamento, correu com um fantasma vestido de mulher antes do nascer do sol. Também bolas de fogo surgiam do chão e deslizam por sobre a grama até se apagarem. Meu pai ouviu uma explicação "científica" de um professor da escola comunitária: são gases que brotam da terra e se inflamam em contato com o oxigênio. Mas restava uma dúvida para

o meu pai: são gases que vinham do solo onde os mortos foram sepultados, bem como as vacas. Conviveu bem com as duas explicações, que lhe pareciam complementares.

Não faltaram alguns malandros que se aproveitavam do medo dos transeuntes do Passo. Como os homens vinham com suas malas de garupas ou sacos com mantimentos comprados na venda, alguns foram assaltados por "fantasmas". Mas isto durou muito pouco. Alguém se vestiu de mulher e com uma açoiteira deu uns laços nos fantasmas, acabando com os assaltos.

Como analisou o antropólogo brasileiro Roberto da Matta, nas sociedades tradicionais, o problema são os mortos. Nas sociedades modernas individualistas, o problema é a morte pessoal, com suas angústias. Nas histórias que ouvi transparecia que era necessário colocar os mortos no cemitério onde deveriam viver em paz, após um longo rito comunitário administrado pela Igreja. Logo, nas minhas memórias a morte não assombrava as pessoas; eram os mortos que podiam penar e, talvez, assombrar os vivos.

De modo geral se morria em paz: o problema, pois, pode ser depois, se a morte houvesse colhida a pessoa sem o perdão da mesa de Jesus, que geralmente era realizada em casa junto ao leito do doente. Mesmo assim, o céu límpido do Vale Três Forquilhas onde à noite vemos milhares de estrelas é parcialmente uma ilusão, pois está povoado de espíritos, distinguindo-se dos céus dos judeus e dos árabes do Oriente Médio no momento com seus drones e misseis mortais. Lá os vivos não tem paz, ao passo que no céu azul do Vale os espíritos sobrevivem em paz, como as pessoas.

Como disse um conterrâneo diante de um velho conflito de terra entre vizinhos: vamos fazer as coisas certas porque os espíritos dos antigos donos estão nos observando. Traduziram "'a comunhão dos santos", do credo apostólico, de forma bem pragmática.

Como disse também um filósofo alemão, que foi forçado a migrar para a França em 1843, ao escrever sobre sua percepção da história: não fazemos a história como queremos, mas pressionados por uma multidão de espíritos de mortos. Embora muitos do Vale ainda não saibam onde fica a Alemanha - a não ser a derrota de 7 a 1 – e a França, o Vale Três Forquilhas não se encontra longe do além-mar, se considerarmos a pressão dos antepassados. Mas há muitos bons espíritos que nos guardam sem traumas!


Oneide Bobsin – São Leopoldo, Fevereiro de 2024.


RELATOS (A) FIADOS III - MEMÓRIAS

RESISTÊNCIAS E MUDANÇAS RELIGIOSAS*

Senhor Adauto, mineiro, comenta com o pesquisador Paulo G. Júnior suas resistências à conversão ao pentecostalismo devido a sua profissão que está ligada ao universo católico. Como deixar o seu ganha pão? Se ele deixar de produzir imagens e se tornar pentecostal, como sobreviver? Assim, manifesta muitas dúvidas. Uma outra senhora mineira converteu-se ao pentecostalismo, mas nos cultos domésticos da Assembleia de Deus ela cobre com lençóis os santos e santas.

O artigo, publicado em Ciencias Sociales y Religión, Para Além da metáfora do Mercado: uma análise não utilitarista da competição religiosa a partir de duas regiões de Minas Gerais, está na contramão de muitas análises sobre o trânsito religioso. No mundo acadêmico seguidamente há temas da moda.

Na pesquisa feita por Alessandro Bartz, numa Comunidade da grande Porto Alegre, ele descobriu fenômenos parecidos, já que muitas mulheres aderiram à Comunidade local via casamento e/ou constituição de família. A senhora C. tornou-se uma pessoa presente nos cultos e também se tornaram, ela e o marido, atuantes no grupo de liderança comunitária. O fato da Comunidade ser pequena e todos, ou quase todos, se conhecerem formando uma "grande família", contrastava com o anonimato de sua igreja de berço, a católica. Mas em sua casa, num quartinho, mantinha um altar católico. Para ela não havia contradição entre a religião de sua família e a nova comunidade de fé do marido. Para a comunhão e os ritos de passagem, a nossa Comunidade; para a sua tradição de família, um altar privado.

Isto me faz lembrar um episódio que vivenciei em Itati/Vale Três Forquilhas, minha terra natal. Minha mãe e meu pai viviam para a Comunidade e estavam atentos aos comentários sobre pessoas que eram procuradas por novas igrejas. Correu a notícia de que uma família estava "virando crente". Minha mãe pediu que fosse com ela e o pai conversar com eles. Esta família vivia da venda de cachaça, por ela produzida de geração à geração. O alambique ainda era movido a bois. Então, precisaríamos inventar um pretexto para comprar a pinga, já que meu pai havia deixado o trago anos antes, e todos sabiam disto. Então, no caminho da rota do sol minha mãe armou um discurso para mim: tu vais comprar cachaça para dar para os teus amigos em São Leopoldo. Combinado, mãe! E lá chegamos, num velho engenho ao lado da estrada, hoje Rota do Sol. Suas paredes internas, de madeira, estavam escurecidas pela fumaça da lenha.

Conversaram de tudo sobre a roça e as coisas da vida como velhos conhecidos de longa data, que, de fato, foram. De repente minha mãe perguntou se eles estavam saindo da nossa Comunidade. Então o senhor W. disse que a estória nasceu do fato de ele ter emprestado o potreiro com um galpão, perto de sua casa, para um "crente" que estava interessado em reunir seus irmãos e irmãs na fé de Terra de Areia, de onde vinha.

O Senhor W. disse que teve que mandar embora o "crente". Ele havia feito muitos buracos no potreiro. Deus lhe havia revelado que ali existia ouro e ele ficaria rico. Foi mandado embora pobre como veio.

Contada a causa dos comentários no Vale, senhor W. não pestanejou. Dona Olívia, preciso largar o meu ganha pão se mudar de igreja. Criamos nossas famílias vendendo cachaça. Na igreja dos "crentes" teria que me desfazer de meu negócio.

Resistências, negociações, adesão sem conversão podem ter um tom utilitário, mas não há, nestes contextos tradicionais, a dinâmica do mercado, ainda. Concordo com o autor do texto acima citado, cujo título afirma Para além da metáfora do Mercado. Com a ressalva, porém, de que estamos nos referindo a contextos onde o ethos familiar esteja respaldado na religião tradicional. Em outros contextos isto pode ser muito diferente, mas não consigo assumir que as opções são racionais. Há espaços sagrados onde o mercado não entra, mesmo que se justifique um tom utilitário da religião – viabilidade da vida pela profissão. Mas isto é outra questão.

Naquele contexto ignorado um outro vizinho da nossa casa resumiu, com sua sabedoria, o relato (a)fiado acima: "Quem tem palavra e a honra não muda de religião, de esposa e de partido político." Filiado ao MDB. Não se trata de concordar ou discordar, mas de relatar. Sua antepassada, filha de alemães, casou com o índio Santos, que havia sobrado de um massacre.

Em 2026/27 O Vale onde me criei completa 200 anos de presença alemã e protestante ( luterana). Relatos (a)fiados decorrem da Tradição oral da minha família. São minhas memórias que não reproduzem o passado. Texto de 2021 reelaborado.


Oneide Bobsin – São Leopoldo, Março de 2024.


RELATOS (A) FIADOS IV - MEMÓRIAS

O SUMIÇO DO FILHO DA VIÚVA POBRE 

Vamos dar um pseudônimo para um jovem com problemas mentais que foi morto numa sessão de tortura numa das vilas do Vale Três Forquilhas nos anos 70. Chamamo-lo de Beto. Muito se ouviu a respeito do desejo da mãe, viúva pobre inconsolada, pelo sumiço do filho. Ela morreu da mesma forma que a mãe do médico leopoldense João Carlos Haas Sobrinho, cujo corpo ainda deve estar em alguma vala no Araguaia. Ambas não puderam sepultar os seus filhos. Era tempo de ditadura militar. Tempos de torturas e de pessoas insepultas. As razões são distintas das mortes, mas tais pessoas continuam insepultas. Sequer tiveram os destinos dos mortos de Incidente em Antares, romance de Érico Veríssimo. No referido romance os mortos estavam insepultos por causa da greve dos coveiros. E os outros mortos solidariamente vêm a publico para denunciar as suas elites. Lava-se em público a sujeira da cidade.

Voltando ao insepulto do Vale Três Forquilhas, que chamamos de Beto, relaciono a razão de seu sumiço à acusação de roubo de um cavalo. Um senhor luterano e um policial, este temido e corrupto, mais algumas testemunhas que talvez tenham ouvido as últimas palavras de Beto, erraram na dose do suplício e Beto morreu por enforcamento. Para torturadores, talvez fosse um acidente de trabalho. Seu corpo, segundo algumas versões que corriam por volta de 1970, fora jogado num rio que faz divisa entre RS e SC. Dizem que o irmão de um dos implicados no crime viu o corpo de Beto, sob uma lona, numa caminhonete antes do seu sumiço. Como dizem os textos bíblicos, nada ficará oculto para sempre. O que foi dito e feito às escondidas um dia voltará a ser propalado nos telhados.

Assim como o sangue de Abel gritou da terra que o embebeu, sempre clamando aos céus, a morte violenta de Beto sempre vinha a público sob forma de fofocas, como se o sangue inocente precisasse ser lembrando. Nem sempre os mortos morrem. Seu fantasma aparece nas falas de vizinhos e da própria mãe, bem como nos não ditos de quem não se sente livre para a denúncia. A presença de uma autoridade policial na sessão de tortura intimidava outras pessoas.

Numa destas vezes, tive a oportunidade de testemunhar a visita do pastor a um dos supostos torturadores que era evangélico-luterano, um comerciante bem sucedido. O pastor foi na casa dele e eu fui junto sem ter previamente a mínima noção do que iria acontecer. Era mais uma visita em que eu acompanhava o pastor que tinha me encaminhado para fazer o segundo grau na Escola Normal Evangélica de Ivoti como preparação para o curso de Teologia. Mais tarde ouvi comentários na família a respeito daquela visita, pois a esposa do suposto torturador era prima do meu avô, cujo sobrenome Eberhardt passava a ser chamado de barata. Sou descendente dos baratas.

O comentário na família aconteceu em razão desta parentela entre o suposto torturador e meu avô barata. O suspeito de crime que não se arrependia havia dito para o meu avô que não bateu de facão no pastor em respeito a minha presença como parente de sua esposa e neto do presidente da paróquia, a maior autoridade da Igreja local. Com esta conversa na família fui recobrando o que não tinha entendido naquela conversa numa sala grande perto do galpão onde Beto fora torturado, por volta de fevereiro de 1972. Vagamente entendi mais tarde que o pastor queria forçar uma confissão em nome da salvação. O pastor estava na função, inclusive autorizado para a sua função de anunciar a reconciliação. Quem matou tem que confessar. Esta frase a memória trouxe. Muitas vezes é assim: uma frase lembrada no futuro por ser dita por alguém recobre o que não havia entendido na conversa do pastor com o suposto torturador. Não tinha entendido que a conversa tivesse a dimensão que tomou mais tarde em minhas lembranças e na vida real da família em cuja dependência deve ter ocorrido a morte de Beto.

A Justiça nunca fora feita, mas o pastor resolveu continuar tocando no assunto, de forma indireta nas prédicas. Numa delas, da qual sou testemunha auricular, vi o suposto criminoso levantar-se e sair caminhando ao longo do corredor do templo. Seus solados dos sapatos davam um estampido ao pisar na cerâmica do templo. No mais, o silêncio sepulcral da Comunidade era grande no templo cheio. Só se ouvia o pastor e os estampidos dos sapatos.

Mais tarde fiquei sabendo que a família do suposto torturador saiu da sua Comunidade de Fé e ingressou numa outra igreja evangélica. Os pentecostais estavam chegando ao Vale Três Forquilhas. Em razão disto, muitos comentários corriam no imaginário do povo. Um dele diz respeito a dois peões que fizeram um trabalho mal feito. O neófito puxou do facão para ameaçá-los, e os jovens apelaram para a fé do patrão: O senhor não é convertido? Vai nos bater? Sim, sou convertido, mas meu facão, não. E correram como correu na vila esta história. Também correram comentários a respeito do sofrimento de uma descendente do comparsa do subdelegado. O imaginário vingativo dizia que a moça sentia-se sufocada como se tivesse com uma corda no pescoço. Era comum rogar praga para quem fizesse o mal. Nem sempre a piedade popular leva em conta que Caim recebeu uma marca para não ser vingado, cessando, assim, o ciclo da vingança. Tornou-se um andarilho, sem rumo, como o irmão, que era pastor de rebanhos, hoje aqui, amanhã acolá, em busca de novos pastos e novos conflitos com os donos de terras.

A Justiça nunca aconteceu, como raramente acontece para os pobres em nosso país. Beto nunca apareceu, o que gerava muitas estórias na mentalidade do povo do local. O pastor não conseguiu a confissão naquela tarde. Ironicamente, o suposto torturador lembrava pela cobrança do pastor as últimas palavras de Beto. O torturador tinha o que confessar; certamente Beto, não. Então, resta o consolo de que o sangue inocente continua clamando da terra aos céus para os milhões de Betos e Betas.

Felizmente, as Comunidades cristãs confessam no Credo Apostólico que Jesus virá para julgar os vivos e mortos, o que não dispensa a ação da Justiça humana, como percebi nos anos de 2013 a 2014, quando integrava a Comissão da Verdade/RS; certamente, contra a vontade do pastor que me encaminhou para o estudo da Teologia integrei a CV. Ele havia se tornado um capelão militar do exercito brasileiro. Separados por visões de mundo distintas, o pastor capelão e eu convivíamos na minha grande família no período de férias. Ele era afilhado de casamentos dos meus avós e seu filho afilhado de batismo de meu pai e minha mãe. A família com forte identidade eclesial suportava pessoas com perspectivas de vida muito distintas. Pelo menos tínhamos em comum a busca da verdade sobre Beto, injustiçado e insepulto.


Oneide Bobsin – São Leopoldo, Abril de 2024.


RELATOS (A) FIADOS V - MEMÓRIAS

OS DOCES DA PICUCHA

Conheci Picucha vendendo doces após o culto que reunia pessoas de todas as linhas do Vale Três Forquilhas, trazidas na carroceria dos caminhões dos intermediários. Ela trazia quatro latas de doces para vender, e assim conseguia sustentar a sua família. Utilizava aquelas latas que, na época, eram usadas também para colocar banha. Numa lata estavam os pé-de-moleque feitos com açúcar mascavo derretido e misturado com amendoim; noutra lata estavam os rosquetes feitos de farinha com um pingo de cachaça para ganhar volume; eram caldeados com açúcar branco derretido; uma lata de merengues, feitos de claras batidas e misturados com açúcar branco. Os merengues eram os últimos a irem ao forno, a fim de não queimar. Por fim, uma lata de bolachas redondas caldeadas com açúcar.

Picucha colocava um banco em frente ao templo e saia dali com as latas vazias. Era o sustento da família de sete pessoas negras, dos quais conheci Airton e Marisa, esta afilhada de meus pais. Certamente a vida da família não era fácil, pois o lote de terra era suficiente para uma casa de madeira e um pátio grande. Nos tempos de hoje, a família poderia ser chamada de sem terra.

Certa vez um pastor novo (1957), por conta, decidiu que ali não era lugar para negócios, e proibiu Picucha de vender seus doces na frente do templo, após o culto. Ela, então, passou para o outro lado da estrada vendendo em frente da casa da Fiola. O presidente da Comunidade não gostou da atitude do pastor, exigindo dele uma conversa com a doceira para voltar ao lugar de antes. O pastor novato disse que não iria obedecer a ordem do presidente. Muito firme o presidente disse: vai sim, caso contrário daqui até Brasília não tem porteira. O pastor entendeu o recado e sugeriu que Picucha voltasse para perto do templo.

O marido da Picucha era negro e trabalhava de diarista nas roças dos outros; também tinha se especializado em fazer charques. Por isto, quando alguém carneava, ele era convidado a preparar charque. Não havia outro meio de conservar a carne por muito tempo naquela época. O charque era cozido com feijão ou se fazia frito com farinha de mandioca acebolada. Com estas atividades o casal conseguia sustentar a família, cujos filhos e filhas cedo saíram do Vale para trabalhar na região da Grande Porto Alegre.

Picucha era uma mulher cor de cuia ou mulata, casada com negro; ela falava alemão. E ai começa outra história nunca bem contada. Diziam que ela era filha de um jovem teuto-brasileiro solteiro. De suas aventuras nasceu Picucha, nunca assumida publicamente pelo pai que se bandeou para a serra onde permaneceu por três anos, voltando casado com uma teuto-brasileira. A nova família era herdeira da casa do pastor Voges onde havia um cartório. Mesmo não assumida pelo pai, ela ganhou um pedaço de terra e aprendeu a falar alemão, certamente um dialeto.

Poucas vezes Picucha participava dos cultos, bem como os seus filhos, os quais foram batizados e confirmados, Não me lembro da confirmação do mais novo e da mais nova, de quem meu pai e minha mãe eram padrinho e madrinha de batismo, sendo que o compromisso fora até a Confirmação.

A doceira da colônia era baixinha e sempre usava um vestido comprido. Em sua cabeça usava um turbante. Seus sorrisos largos animavam a todas as pessoas. Parece que em público não havia tristeza.

O filho do pastor Kunert (1949 -1955), que morou na colônia parte de sua infância lançou pela Oikos um romance chamado Ilha Redonda. Picucha passa a ser uma personagem do romance de Udo Kunert, ex-professor de História do Sinodal e da Unisinos. Vejam o que ele diz de sua personagem.

"Desde muito miúdo, afeiçoou-se a uma senhora que vendia doces. Tratava de Picucha. Apresentava uns sessenta anos, bastante gorda, usava um turbante na cabeça, incondicionalmente branco. Sempre risonha e prestativa. Sabe primo, era uma mulher de bem com a vida. Caiu na graça da criançada redondense. A gurizada a aguardava todos os sábados desde cedo, preparados, sôfregos, com o troco na mão, para comprar algum doce. (...) Mas Picucha não era apenas o encanto das crianças, pois contava mil histórias de tempos antigos, misteriosas, intrigantes. (...) Pessoa importante na educação dos miúdos redondenses, sem ter sido professora de formação. "(p. 49-50).

Ao contar histórias, contava as suas. Algumas muito tristes. "Traía sua origem nas lendas que contava. Narrava Picucha que muitos negros (lá na África) chegaram ao rio sagrado, que, em certas épocas do ano, era caudaloso, mas que, muito rápido, perdia seu volume de água. Os primeiros que chegaram puderam banhar-se nas águas abundantes, tornando-se brancos, muitos brancos. Os que chegaram um pouco depois já encontraram o rio com menos água. Seu banho mal deu, foi impossível banhar-se por completo. Por isso, ficaram mulatos. Os últimos que chegaram encontraram apenas algumas poças espalhadas no leito do rio. Mal conseguiram lavar as palmas das mãos e as plantas dos pés. Assim, permaneceram negros, com as plantas dos pés claros e do mesmo jeito as mãos." (p.50)

As histórias da Picucha falam por si mesmo. Ao contar a histórica, como disse o romancista, ela contava a sua história e o passado africano se tornava presente, pois precisa se justificar diante de uma população teuto-brasileira evangélico-luterana, mesmo que esta a ajudasse a comprar os seus doces que alimentavam a sua prole. Pelo menos as palmas das mãos e dos pés pareciam com as dos brancos.

Contou-nos o pastor que mais tarde também reescreveu esta história, quando já era capelão militar, que nos últimos momentos da vida o pai da Picucha lhe revelou o segredo, assumindo a paternidade e permitindo que esta história fosse revelada depois de cinquentas anos. Ele faleceu em 1970.

Picucha faleceu mais tarde e, mesmo morando na Grande Porto Alegre, pediu para ser sepultada no cemitério evangélico de Itati/Vale Três Forquilhas. Voltou para a terra onde perdeu o umbigo e bebeu a água do rio Três Forquilhas. A proximidade e aceitação negada em vida se realizaram na morte. As sepulturas de pai e filha estão no mesmo espaço, no campo santo. Aguardam o "dia final" quando, certamente, o pai vai comer pé-de-moleque da filha, e ela dará um grande sorriso mulato de orelha a orelha para o seu pai Schmidt. A festa sem preconceitos poderia ter sido muito antes.

Oneide Bobsin – São Leopoldo, Maio de 2024.


Processo de Urbanização e Ação Pastoral

Anotações sobre a tese de Rolf Schünemann, Em Busca de Dinmici-dade: a Presença Pastoral da Igreja Evangélica de Confissão Lute­rana nas Regiões Metropolitanas do Rio de Janeiro e de São Paulo entre 1960 e 1970. (Tese [Doutorado em Teologia] — Departamento de Teologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 1997). Oneide Bobsin.

O objeto de estudo da tese Em Busca de Dinamicidade... levanta questões extremamente relevantes para as igrejas tradicionais que planejam uma ação pas­toral em cidades/metrópoles fortemente influenciadas pelos avanços tecnológicos, pela crescente marginalização e pelo avanço do pluralismo religioso. 



Pomeranos no Espírito Santo

Identidade e direitos

(Livro de Dayan Rosa/2024)

Prefácio do Livro: Prof. Dr. Oneide Bobsin.

Prefaciar o livro de M. Dayan me reporta às atividades docentes em Ciências da Religião no curso de Teologia com presença de jovens estudantes pomeranos capixabas luteranos. Os e as estudantes capixabas revelam traços culturais e de fé marcantes, como prenúncios do conteúdo da obra que nasceu de sua dissertação apresentada no Programa de Pós-Graduação da Faculdades EST. Assim, a reflexão bem conduzida por Dayan sistematiza de forma acadêmica as percepções fragmentadas que tive no curso de Teologia com os jovens e as jovens capixabas.

A pergunta pela Identidade e pelos Direitos dos imigrantes pomeranos, e de seus descendentes, no estado do Espírito Santo, "suleia" o seu trabalho de forma dialética, fugindo, assim, de dicotomias entre ufanismos nem sempre desnecessários de um povo e os sofrimentos decorrentes, mais no passado, da ausência de políticas públicas. A saída de um território entre o mar Báltico, a Alemanha e a Polônia no século XIX, ainda com traços de feudalismo, permite aos homens e às mulheres embrenharem-se nas matas fechadas e ali tentar realizar o sonho que acompanha quase todos(as) os(as) imigrantes: uma nova terra para fugir dos sucessivos conflitos, da pobreza opressora e garantir o mínimo de liberdade numa terra a ser desbravada, inicialmente com promessas parcialmente cumpridas pelo governo imperial brasileiro, promotor do processo de imigração em sintonia com o capitalismo daquela época.

O sonho dos e das imigrantes, sejam eles pomeranos ou de outras etnias encontradas no Espírito Santo e alhures, pode ser sintetizado num ditado palestino ainda muito atual: Sem terra não há liberdade. Logo, a liberdade sonhada por imigrantes, no caso dos pomeranos e das pomeranas, não é uma ideia abstrata. Ela se depara incialmente com a falta de apoio de quem promoveu a imigração, exigindo das famílias um esforço muito grande para vencer as dificuldades de quem fora isolado e esquecido por muito tempo. Lembro-me como correu por gerações uma frase atribuída aos imigrantes que vieram para o sul e dos quais sou descendente: No início não só trabalhávamos muito, como passávamos muito trabalho. Não foi diferente com o povo pomerano.

A obra de M. Dayan demonstra o seu compromisso de advogado, Defensor Público, Agente Político, Analista e Oficial do Poder Judiciário, historiador, filósofo, estudioso da Psicologia e cidadão ao enriquecer o trabalho com a pesquisa participante e uso da História Oral, bem justificados em sua escrita. Em outras palavras, a vivência profissional no meio pomerano, cuja língua, em alguns momentos, ainda guardava a dificuldade de ser entendida por profissionais do Estado, mostrou que as pessoas simples do povo sofrido se tomam atores da labuta intelectual. Como disse Boaventura de Sousa Santos, o pesquisador ou a pesquisadora que transcendeu as linhas abissais entre universidade e povo, não fala sobre, mas com. Seu trabalho, que ora vem a público, traz as marcas de uma escuta solidária. Se a linguagem ainda pode ser um empecilho para uma cidadania plena no meio pomerano, como o foi no passado, o compromisso com as políticas públicas permite ao pesquisador participante superar distâncias. Assim, a História Oral é mais do que repetir o passado; é uma forma de reivindicar um presente cidadão.

A memória dos pomeranos e das pomeranas, em grande parte calcada no empreendimento familiar da pequena propriedade, foi marcada pelo sonho de liberdade, mas também pelo auxílio estatal não cumprido em grande parte, pela falta de assistência médica, pelos perigos nas montanhas selvagens da mata atlântica, enfim, pelo trabalho árduo à base da família, cujos frutos nem sempre receberam o justo valor. Assim, as dificuldades e as dores, mas também as alegrias, revelam que esta coletividade étnica não esmoreceu, dando ao estado do Espírito Santo uma referência nacional na cafeicultura e nos hortifrutigranjeiros. Várias vezes, estudantes capixabas nos brindavam com pacotes de café.

Contudo, a pesquisa de Dayan revelou outros aspectos importantes para a identidade de um povo que luta por seus direitos. Não falta em seu escrito a contribuição para uma identidade que situa o indivíduo numa coletividade: a participação das Igrejas Luteranas (IECLB e IELB). A forte presença do batismo e a riqueza ritual dos casamentos e sepultamentos, num tom muito festivo ou acolhedor do sofrimento, adensam uma coletividade étnica que ainda não se rende ao individualismo. A escolha da literatura para fundamentar os valores culturais com tons coletivos e/ou comunitários é balizadora de um trabalho que respeita o contexto marcado pelo povo pomerano.

A presença deste povo na economia, na luta consagrada pelo direito da língua pomerana como oficial nas escolas, e a presença espiritual do luteranismo através de Comunidades de Fé bem constituídas e participativas, constituem-se naquilo que o autor tão bem tematiza: a identidade do povo pomerano se sustenta por uma representação social que não se fecha em si, pois o aprendizado da língua nacional ao lado da língua pomerana na família e por algum tempo na Igreja permitiu a aproximação com outras etnias, também de imigrantes, e a defesa dos direitos através da língua do Estado brasileiro, por meio de seus agentes inseridos profissionalmente no meio do povo, como o fez Dayan, jurista e defensor de direitos que trouxe à teoria o cheiro de um povo oriundo de terras distantes e que pode se considerar brasileiro.

Muitas situações foram superadas, outras tantas, certamente, ainda virão; talvez com menos incertezas se as políticas públicas não forem submetidas a uma representação social fragmentada pela privatização que afeta a memória.

Redigi este prefácio num momento em que a tragédia das intensas chuvas fez de nosso território um Rio Grande repleto de perplexidades e dores permanentes, que serão superadas lentamente pela solidariedade e pelo Estado. Aqui estão sob o efeito devastador das chuvas intensas descendentes de pomeranos, italianos, alemães, ucranianos, poloneses, entre outras etnias. A força da solidariedade das pessoas e das organizações da sociedade civil não foram suficientes para dar conta do emergencial e a reconstrução a médio e longo prazo do Estado gaúcho. Logo, todas as forças vivas da sociedade gaúcha buscam o suporte para a superação no Estado brasileiro, este fragilizado por minorias privatizantes, as quais também recorrem a ele na reconstrução.

Nestas horas de tragédias, as representações sociais que marcam identidades de uma população são fundamentais para a reconstrução do que fora destruído pela vingança das águas. Em grau muito menor, mas ao longo de um século e meio, a contribuição da identidade pomerana como representação social, perpassada pela espiritualidade, pode ser uma referência importante na superação dos momentos de dor e de destruição, como no passado e agora. Os pomeranos e as pomeranas, como povo étnico, merecem ser lembrados pela academia como força de superação para momentos trágicos e de celebração da esperança. Dayan deu um passo importante com sua pesquisa bem fundamentada principalmente por ser de fora da cultura que analisa, a fim de apresentar a força das representações de um povo na constituição permanente de sua identidade. Não bastam as virtudes de um povo para superar momentos trágicos de fenômenos humano-climáticos; é preciso firmar-se em representações sociais coletivas e em políticas públicas.


AFRO

TEOLOGIA

Construindo uma Teologia das Tradições de Matriz Africana 

(Livro de Hendrix Silveira /2024)

Posfácio do Livro: Prof. Dr. Oneide Bobsin.

Por onde começar um posfácio que vai além do papel atribuído a um orientador segundo as exigências acadêmicas num período de seis anos, considerando o mestrado e o doutorado? Com esta pergunta de encruzilhada, que pretende fugir de uma cosmovisão eurocêntrica para uma cosmopercepção africana, a nova leitura da tese que se tornou livro me faz lembrar da ave Sankofa, cujo olhar se volta para atrás e que desconstrói um imaginário movido pela noção de progresso para poucos e de ordem para muitos.

Foram aproximadamente seis anos de encontros, desencontros, dúvidas, percalços, debates e cenas inusitadas das quais lembro uma. Numa sala com quase dez doutorandos e mestrandos em Teologia Prática, onde os protestantes ou evangélicos eram maioria, a presença de um sacerdote das Religiões de Matriz Africana deixava o ambiente impertinente, oscilando entre o respeito do politicamente correto e o interesse em conhecer uma fé, no mínimo, estranha. Talvez um ou outro de tradição mais conversionista pudesse apostar em segredo numa mudança da tradição para o Babalorixá, por ser da identidade de confissões cristãs a conversão a sua organização eclesiástica.

Foi neste clima de diálogo oportunizado pelo nosso PPG que aconteceu algo que parece anedótico. Os estudantes falavam de seus trabalhos sociais em suas igrejas para com as pessoas marginalizadas. Cada um contou o engajamento social de sua congregação. E, por fim, alguém ousou perguntar ao Hendrix se a sua instituição religiosa também fazia trabalho assistencial. Não, respondeu Hendrix, nós somos os pobres que vocês atendem. Foi uma resposta que trouxe um silêncio e, talvez, uma mudança de perspectiva para muitos daquela sala de aula.

Numa linguagem bíblica não eurocêntrica entendemos o Babalorixá Hendrix ocupando dois lugares ao mesmo tempo: o samaritano desqualificado pelos sacerdotes e levitas do templo/tempo histórico de Jesus e a vítima dos salteadores. A co-extensão de lugares permitiu a Hendrix olhar para o mundo cristão que o cercava com respeito e com questionamentos argutos sobre um Cristianismo que colonizou os sentidos de forma eurocêntrica. Assim, a convivência dos diferentes no PPG em Teologia, majoritariamente cristão protestante, foi sustentada por um espaço cujas fronteiras possibilitavam ir para além de discursos algumas vezes destituídos de alteridade, que se encarnou na convivência em vários espaços do campus da EST, mesmo com dificuldades.

Logo, o terreiro como espaço civilizatório se expandiu para um ambiente acadêmico que já se pautava por um processo teológico de decolonialidade. Por isto o historiador Hendrix conseguiu sustentar que Rudolf Otto e Mircea Eliade, como tantos outros europeus, "baixaram"' no terreiro do Babalorixá que se tornou doutor em teologia, quando poderia seguir uma pós-graduação em ciências seculares. Hendrix foi ousado em se doutorar em Teologia, mesmo que questionado por especialistas de outros saberes nos estudos das Religiões de Matriz Africana. Assim, sua tese que ora se transforma em livro, evidenciou que o Método Teológico, tantas vezes acusado de ser normativo, não é propriedade das Igrejas cristãs e de seus institutos de teologia.

Seu olhar teológico se sustenta ao atribuir sentidos aos rituais das religiões de matriz africanas numa perspectiva afrocentrada, conceito entendido não como inversão do eurocentrismo com marcas patriarcais e colonialistas. A afrocentricidade, portanto, é uma versão africana que se pauta pelo distanciamento de uma afrotéofobia, termo criado por Jayro Pereira de Jesus, a quem Hendrix atribui impulsos para a problemática de sua tese.

Faz-se necessário destacar, entre tantos eixos temáticos que constituem uma arquitetura nada linear ou hierárquica de seu trabalho acadêmico, a noção bem fundamentada pela relação da experiência de fé e teoria. O trabalho parte da cosmopercepção que se sustenta nas comunidades tradicionais de terreiro como espaços de aprendizagem afroteológica e filosófica. Em outras palavras, o terreiro é um pedaço da África numa situação diaspórica.

Nesta perspectiva, cabe realçar a permanência da Filosofia Africana na diáspora com um conjunto de características que resistiram e resistem ao epistemicídio promovido pela modernidade ocidental centrada num eurocentrismo eivado de um Cristianismo aliado ao colonialismo, patriarcalismo e capitalismo. A cosmopercepção africana pauta-se na resistência a partir da ancestralidade e da memória, senioridade e transgeracionalidade, circularidade, complementariedade e integração; corporeidade, musicalidade e ludicidade; oralidade, religiosidade e axé, como também pelo comunitarismo/cooperativismo e ética ubuntu. Certamente, esta filosofia poderá influenciar a sociedade e as religiões para a desconstrução dos laços entre patriarcalismo e colonialismos entrelaçados pelo capitalismo.

A crítica à "trindade" que conjuga capitalismo, patriarcalismo e colonialismo - estes dois últimos anteriores ao primeiro - está sustentada numa compreensão de Deus monoteísta. Com isto, Hendrix lança mais uma provocação para futuros trabalhos, como tantas outras instigantes percepções de sua pesquisa que chegam ao público maior. Entre elas é citado Beniste, no rastro de que os Orixás são manifestações de Deus: "Deus é Um, não muitos: a terra e toda a sua plenitude pertencem a este único Deus: é o criador do universo: abaixo dEle está a hierarquia dos Orisà, os quais recebem a incumbência de dirigir os seres humanos, administrar os vários setores da natureza, servindo de intermediários entre os humanos e Ele."

Com esta obra instigante, o Babalorixá e doutor em Teologia nos situa nas encruzilhadas das reflexões teológicas, das Ciências da Religião e do Ensino Religioso, nas quais a divindade não se prende, como na experiência pessoal carregada de sentido profundo, aos conceitos universalizantes e à instrumentalidade técnica dominante e superficial. Como o historiador Hendrix disse que Rudolf Otto baixou no terreiro, para dizer que um deus compreendido não é um Deus. Por fim, mas não menos importante, não podemos esquecer que Otto, entre muitas viagens, visitou a África, donde auriu uma das fontes do Sagrado ou do Santo.


O Homem De Um Só Parágrafo:

desaparecimentos, equívocos e esclarecimento sobre Charles Fox Parham

Tiago de Moraes Kieffer

Oneide Bobsin

Este artigo aborda a escassa informação disponível sobre Charles Fox Parham, uma figura destacada nos primeiros estágios do pentecostalismo. No contexto acadêmico brasileiro, Parham frequentemente é condensado em um único parágrafo, apesar de sua influência significativa no crescimento do movimento pentecostal. Este estudo destaca os desafios em encontrar uma compreensão abrangente de sua vida, uma lacuna que se reflete tanto nas percepções populares quanto na pesquisa acadêmica. As buscas em bancos de dados acadêmicos produziram resultados limitados, devido à falta de terminologia específica para Parham. Portanto, o objetivo deste estudo é explorar as polêmicas que cercam a vida de Parham, incluindo alegações de homossexualidade, racismo e ensinamentos heterodoxos. Isso visa proporcionar uma visão mais completa de sua biografia e teologia, contribuindo assim para uma compreensão mais aprofundada da teologia pentecostal.

Palavras-chave: Charles Fox Parham; Lacunas; Polêmicas.


TEOLOGIA DA PROSPERIDADE, DEMONIZAÇÃO E PROJEÇÃO

CONFLUÊNCIAS E DIVERGÊNCIAS

Fernando Cardoso Bertoldo

Oneide Bobsin

O artigo resulta da pesquisa em andamento para o pós-doutoramento que busca reconstruir e entender desde um ponto de vista interdisciplinar o discurso da Teologia da Prosperidade a respeito da demonização das entidades espirituais e orixás das religiões de matriz africana. Assim, para interpretar a demonização do outro utiliza-se do aporte teórico da psicanálise Kleiniana com destaque para a noção de Identificação Projetiva.

Palavras-chave: Teologia da Prosperidade; Tradições de Matriz Africana; Psicanálise de Melanie Klein; Identificação Projetiva.


Branquitude e privilégio branco na formação da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil entre os anos de 1824 e 1942

Este artigo discutirá as questões raciais e o privilégio branco como conceitos estruturantes da sociedade brasileira e suas implicações na formação da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil tendo como base o referencial teórico-analítico de branquitude. Deste modo lançará luzes sobre os privilégios concedidos para as pessoas brancas ao longo do processo de formação da sociedade Brasileira, principalmente, após a Independência e Proclamação da República. Neste período as pessoas brancas eram tidas como sinal de desenvolvimento e as pessoas negras e indígenas eram consideradas como sendo as responsáveis pelo atraso do Brasil. Portanto, é neste cenário de privilégios para as pessoas brancas que as primeiras comunidades luteranas são fundadas e marcam a colonização da Região Sul e do Espírito Santo. Neste sentido, no Brasil, o luteranismo está marcado pelo pertencimento étnico e pela preservação da germanidade. Portanto, o desafio para a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil é tornar-se uma igreja pluriétnica, denunciar o racismo como pecado e iniciar um processo de luta antirracista para torna-se de fato uma Igreja no Brasil.

Palavras-Chave: Branquitude; Privilégio; Luteranismo; Racismo.


A FALSA ADORAÇÃO* 

O Povo de Deus havia sido libertado da escravidão do Egito e caminhava rumo à Terra Prometida por Deus. No caminho, a saudade da escravidão levava o mesmo povo a adorar outros deuses, bem como lembrar das panelas de carnes no Egito.

O caso do bezerro de ouro (Êxodo 32) é um ótimo exemplo. Moisés havia subido ao monte para falar com Deus, que havia lhe entregue, na forma de tábuas, a escritura. Como Moisés demorava, o povo se sentiu abandonado. Então, sob outra liderança, decidiu fundir um bezerro de ouro com as joias das pessoas que estavam em marcha. Fundiram as joias e produziram um bezerro de ouro e diante dele dançavam, pois ali estava o deus que iria caminhar a sua frente.

Moisés desce da montanha e vê todo aquele festejo. Ira-se com o seu povo como o fez Deus. Então, transforma o bezerro de ouro em pó. Dilui o pó em água e faz o povo beber, como se dissesse: engulam o seu deus diluído em água, uma fabricação das mãos humanas. Assim, o ouro se transformou em excrementos humanos.

Nos centros financeiros dos Estados Unidos e em São Paulo o bezerro se transformou em touros. Um artista nos Estados Unidos investiu o seu próprio recurso na fabricação de um touro dourado e o colocou sob um presépio sem ninguém ver. Dali ele fora levado para frente do centro financeiro mundial. As mulheres reagiram e colocaram em frente ao touro a imagem de uma menina encarando-o, de maneira desafiadora. Em São Paulo, há uma réplica do touro americano, ou seja, nada original. Dizem que nos Estados Unidos pessoas apalpam o touro para conseguir prosperidade. É o culto da fertilidade financeira.

Em nossa sociedade que se diz moderna a adoração de touros dourados é uma realidade cada vez mais presente. E cada vez mais as pessoas miram em Deus, mas adoram os bezerros transformados em touros. É adoração do Dinheiro na forma extrema de capital financeiro. No ano passado o Estado brasileiro repassou ao sistema financeiro internacionalizado aproximadamente 600 bilhões de reais em rolagem da dívida, na qual estão embutidos os juros. Quantos orçamentos para a saúde pública cabem neste montante?

Jesus já sabia desta nossa tentação antiga e moderna. Por isto disse: Não podeis servir a dois senhores. Não podeis servir a Deus e ao Dinheiro (Mateus 6, 24). Na Santa Ceia nos alimentamos do Deus vivo que dá vida e não vira excremento.

Pastor Oneide Bobsin/ Prof. de Ciências da Religião.

* Texto publicado no Jornal Evangélico Luterano sem as imagens e os dados do serviço da dívida do Estado brasileiro.


Pensar em linhas: notas metodológicas para a pesquisa empírica em teologia

Thiago Schellin de Mattos

Oneide Bobsin

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O texto a seguir traz apontamentos metodológicos que visam caracterizar possibilidades teóricas e práticas para a pesquisa empírica em teologia, especificamente no que tange à linguagem teológica como "objeto" de estudo. Para tanto, estabelecemos um diálogo com a filosofia de Deleuze e Guattari, orientados ainda pela primazia empírica dos estudos de antropologia social e cultural através da perspectiva da "invenção cultural" de Roy Wagner. Lida-se com conceitos abrangentes que extrapolam o contexto da teologia, podendo ser úteis para a investigação e análise da linguagem religiosa de forma geral, para além da tradição cristã, ou como ferramenta de articulação desta com outras tradições religiosas e culturais. Busca-se com isso orientações e estratégias de investigação que sejam capazes de indicar um certo modo de pesquisar abrangente, apto para se atualizar em outros arranjos de pesquisa empírica. Um modo de inventar a pesquisa como plano de intensidade e registro de linhas intensivas. Fazer mapas intensivos. Pesquisar de forma intensiva. Pensar em linhas.

Palavras-Chave: Linguagem Teológica; Linhas de Fuga; Pesquisa Intensiva; Teologia Empírica.

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MULHERES POBRES E BOLSA FAMÍLIA:

DINHEIRO E AUTONOMIA

Devido à complexidade da pobreza e da transferência de renda – esta com tantas limitações – nossa resenha fará um recorte considerando as vozes de mulheres pobres e a percepção desta política governamental incrementada nos Governos Lula e Dilma, e que volta a partir de 2023.

Segundo a autora e o autor, "a experiência do Bolsa Família, que fornece um rendimento regular para a grande maioria das mulheres, é muito nova para a maior parte delas. Impacta-lhes a vida: contudo, continuam pobres e carentes de inúmeros direitos." Mesmo assim, a obra analisa e discute o papel libertário de tal renda.


Der dunkelhäutige Tod des weißen Protestantismus' 

Geister-Schmuggel an den religiösen Grenzen


Zusammenfassung 

Anhand des Bildes der Leinwand, auf die ein Film projiziert wird, fragt der vorliegende Text nach möglichen Übergängen bzw. nach dem symbolischen Schmuggel zwischen dem aus Populärkatholizismus, afrobrasilianischen Kulten, Spiritismus und Umbanda gewobenen Hintergrund und dem Pentekostalismus (Pfingstbewegung) bzw. Neopentekostalismus. Das auf die Leinwand projizierte Dram a hebt den durch den Pentekostalismus - genauer gesagt: durch den Neopentekostalismus - veranstalteten "geistlichen Krieg" gegen die afrobrasilianischen Kulte und die Umbanda hervor. In diesem Umfeld soll untersucht werden, ob der durch den Pentekostalismus bzw. Neopentekostalismus veranstaltete Kam pf nicht durch einen Bruch auf religiösem Gebiet auf der Grundlage einer kulturellen Kontinuität gekennzeichnet ist.

Der Pentekostalismus ist äußerst anfällig für den Synkretismus. Ohne jegliche dogmatische Bildung und ohne viel theologische Bemühungen bleibt der Pentekostalismus offen für den Synkretismus. (Ricardo Gondin Rodrigues) 


SAGRADO E COTIDIANO ENTRE LUTERANOS BRASILEIROS: SINCRETISMOS

Nós sentimos,

Portanto, nós pensamos,

Por conseguinte, nós somos. 

Fides et Ratio, tema proposto para um seminário internacional na Faculdades EST, oportunizou uma reflexão sobre o sagrado, o cotidiano e o sincretismo, no contexto específico da Igreja Evangélica de Confissão Luterana. O debate proposto por este artigo não se constrói numa perspectiva mecânica, muitas vezes dualista, que coloca ao lado da razão o saber teológico erudito e no lado da fé e/ou religião os saberes irracionais das práticas populares. No lastro de Rudolf Otto o sagrado é uma categoria composta que vincula dialeticamente o racional e o irracional, sendo este último o meio pelo qual não se pode aprender o divino. O sagrado que escapa das gaiolas verbais se refugia num mundo de sentido que não se prende às categorias do erudito e popular. É um mundo pós abissal longe da monocultura do saber. Assim, o cotidiano desfaz barreiras reducionistas e se torna refúgio da dignidade na ambiguidade do claro e escuro. Afinal, no momento vemos e nos vemos num espelho embaçado.

Palavras-chave: Sagrado; Cotidiano; Sincretismo.


Aparições profanadoras - tempos e lugares

Então o véu do santuário

rasgou-se de alto a baixo.

(Matheus 27.51)

Heos eschatou tes ges

A preleção proferida por Vítor Westhelle ao final dos anos 1990 na Escola Superior de Teologia, São Leopoldo/RS, antecipa um programa de pesquisa para a sua docência no Brasil e no exterior. Além disso, o tema Os sinais dos lugares: as dimensões esquecidas foi publicado, em 1990, numa coletânea comemorativa pelo aniversário de sessenta anos de nosso professor Joaquim H. Fischer, sob o título Peregrinação. Assim, o tema da preleção é emoldurado pelo título da coletânea comemorativa. Sua preleção, ao apontar para sinais dos lugares, vincula-se ao tema da peregrinação e traz as marcas do pastorado no oeste do Paraná e de sua assessoria teológica através da Comissão Pastoral da Terra, organismo da Igreja Católica que se ocupa da busca, junto com os sem-terra, de lugares para a produção e reprodução da vida. Sua preleção tem cheiro de povo e de terra, a qual precisa ser libertada do paganismo do latifúndio a partir dos sinais dos tempos.


ENSINO RELIGIOSO E SUAS INTERFACES

A relação Estado - sociedade civil - sujeitos docentes

A construção do que é fenômeno religioso

A estrutura da exposição segue os seguintes passos. Inicialmente problematizo alguns textos de Lutero que abordam uma relação tensa com "turcos" - islamismo - e judeus. Tento recuperar aspectos de um seminário ocorrido na ULBRA, cujos debates perguntavam pelo Lutero como um teólogo para o diálogo inter-religioso. Coube-me reagir a uma palestra de Martin Zeuch, a qual deveríamos divulgar entre nós. Daquele debate retomo a questão do diálogo religioso e a ideia de um Estado liberto das amarras religiosas. Reconheço que os meus conhecimentos a respeito dessa temática em Lutero são limitados. Penso que em nosso meio há pessoas que poderão acrescentar muitos aspectos às questões que levanto.


ROMANOS EM PERSPECTIVAS

A VERDADE PRISIONEIRA DA INJUSTIÇA: Perspectivas Teológicas


O apóstolo Paulo continua surpreendente, pois ele não ousa confundir Deus com as nossas imagens sobre Deus, que nada mais são que ídolos. E, além disso, percebe que a verdade foi aprisionada pela injustiça, segundo a tradução da Bíblia de Jerusalém. Se Paulo vivesse nos tempos de mentiras necrófilas de hoje, marcados por Fake News, em nada mudaria o início de sua Carta aos Romanos.

Na obra clássica de Barth - A Carta aos Romanos[1] - o texto acima mencionado, Rm. 1.18, assim é traduzido: "Os que detêm a verdade preso na desobediência." Os comentários de Barth colocam em primeiro lugar a seguinte frase: "Primeiramente a gente se perde em si próprio depois no não-Deus" (p. 87). Perder-se em si próprio e no não-Deus confirmam os seres humanos que buscam se salvar em imagens projetadas de Deus, que são no fundo a nossa própria imagem. Como somos levados à auto adoração. Em palavras de Barth, na mesma página lemos: "Colocando Deus sobre o trono do mundo, estamos, em verdade, querendo nos referir a nós próprios". Em outras palavras, queremos sentar no lugar de Deus em seu trono. Isto não é possível, mas idolatricamente achamos que sim, vivendo numa mentira. Além disso, Barth joga por terra a existência de um anti-Deus, tão popular em nossos dualismos religiosos. Para Barth há Deus e o não-Deus.

Focando no tema da verdade aprisionada pela injustiça ou na desobediência, Barth faz a seguinte afirmação: "O ser humano prendeu, encapsulou e adequou a seus critérios a verdade, i. é., a santidade de Deus, tirando dessa forma sua seriedade e sua abrangência, tornando-a comum, inofensiva e inútil, transformando-a em mentira." (p. 89) Se isto os seres humanos ousam contra Deus, o que diremos das mentiras que as pessoas contam umas para as outras, facilitadas pelas novas tecnologias de comunicação. Nunca se mentiu tanto sob a palavra de Jesus - A Verdade vos libertará, conforme João 8. Como ela vai libertar se estiver prisioneira da injustiça no campo civil e político ou na desobediência a Deus na fé? Nada mais está sendo feito que servir ao não-Deus, que é o ser humano projetando-se a si mesmo. Contra isto a ira de Deus se manifesta dos céus.

SOMOS TODAS ESCRAVAS

Acima fizemos algumas considerações a partir da obra clássica de um teólogo europeu. Agora daremos outra percepção a partir de um teólogo latino-americano, o uruguaio Juan L. Segundo.[2] Sua tradução do texto bíblico de Romanos 1.18 assume as seguintes palavras: "Por que a ira de Deus está sendo revelada desde o céu contra todo o tipo de impiedade e injustiça dos homens que tem prêsa a verdade na injustiça.".

Paulo novamente nos surpreende na interpretação de Segundo quando fala de pecado. Aqui está a chave de seu pensamento na interpretação de Romanos. Para Paulo, o pecado é um mecanismo, "não uma violação isolada e consciente da lei. (p. 330) Este processo ou mecanismo "deforma o homem e cujo resultado é por isso mesmo, o inumano." (idem). Por esta razão Paulo não menciona o decálogo do velho testamento, como, por exemplo, fornicação e adultério entre tantas ações isoladas. Simplificando com todo o risco das simplificações, os pecados isolados e pessoais são frutos de um mecanismo que atinge a todos, judeus e gentios. Logo, o seu critério é antropológico, porque todos e todas pecaram. Assim, Paulo se distancia profundamente de nossos moralismos dúbios, frutos da hipocrisia. Em decorrência, o tema da homossexualidade assume outra dimensão. Vejamos como Segundo interpreta Paulo:

"Deste ponto de vista, é relevante o fato literário de que Paulo, ao falar desse tipo de relações sexuais, emprega a categoria natural-antinatural (cf. 1.16-27) e não qualquer outra relacionada diretamente com a oposição moral-imoral. Na verdade, insiste mais na ofensa feita a Deus ou ao homem a qual conflui na "desonra" mútuas dos seus corpos (1.24) Quer dizer, em que tiram ao corpo humano a honra que lhe é devida para relacionar-se humanamente com animais. Paulo insiste, assim, na desumanização do corpo" (p. 332).

Como vimos até aqui, Barth e Segundo se orientam pela mesma perspectiva teológica, assim expresso pelo segundo: "Para que, então, o homem aprisiona a verdade? Porque incomoda ao que ele quer fazer. Enredando-se em seus raciocínios e obscurecendo seu coração, busca e termina fabricando um Absoluto a medida de seus desejos. Nesse caso não é que Deus toma a iniciativa de castigar, entregando o homem a seus próprios desejos. Estes se desatam porque o homem mesmo ajeitou as coisas para se desembaraçar do único que podia mantê-los nos limites, na norma que reconhecia como absoluta." (p. 341).

Arrisco, ao finalizar, uma palavra sobre o tempo em que vivemos sob a mentira/fake news. O neoliberalismo casado com a extrema-direita tenta ajeitar as coisas para se desembaraçar do único que poderia mantê-los nos limites. Na política, um Estado para todos; na fé, um Deus que não se confunde com messias humanos.

A filosofia política que guia a economia capitalista ajeita as coisas para se desembaraçar de quem coloca limites na fé e na política. A exploração das riquezas do território dos Yanomamis, especialmente o ouro, denuncia a mentira presa na injustiça/desobediência. O que vemos diariamente nos meios de comunicação só não é mais cruel porque o governo federal anterior perdeu a eleição. Se isto não tivesse ocorrido, o genocídio promovido pela extrema-direita teria se efetivado. Mais quatro anos, e seria o fim daquele povo e de milhões de pobres.

A ideo-teologia do sistema que nos domina se sustenta ao aprisionar a verdade na injustiça, produzindo uma justificativa sacrificial: um parte - os pobres que são maioria - deve morrer para uma minoria viver. Não houve falha nas politicas públicas nem incompetência; foi uma política necrófila deliberada.

[1] BARTH, Karl. A Carta aos Romanos. Tradução de Uwe Wegner. São Leopoldo: Editora Sinodal/Faculdades EST, 2016.

[2] SEGUNDO, Juan Luis. O homem de Hoje diante de Jesus de Nazaré II - Sinóticos e Paulo: história e atualidades. São Paulo: Ed. Paulinas, 1985.

Dr. Oneide Bobsin


PROTESTANTISMO E RELIGIOSIDADES COMTEMPORÂNEAS


Nosso objetivo com este texto não é histórico nem sociológico, por mais que saibamos que as religiões ou igrejas não operam no vácuo. Pretendemos,  isto sim, destacar um aspecto da religiosidade contemporânea que se manifesta, como tema transversal, em várias práticas religiosas e em discursos não religiosos que buscam potencializar a dimensão interior como fonte de superação das insuficiências das condições externas, mas também da condição humana. Este eu pode ser aperfeiçoado a partir de visões religiosas, como o fazem as igrejas evangélicas neo ou pós-pentecostais, no horizonte da afirmação da modernidade.


Religiões em Romances

Ao invés de propor uma longa resenha, este artigo busca salientar os fios que ligam entre si três obras que "traduziram" religiões em romances. Fazendo uso de uma variedade de personagens e enredos, Shafique Keshavjee, Catherine C1ément, Jostein Gaarder e outros navegam pelas histórias das religiões e apresentam o que cada uma contém, tanto em termos de suas virtudes como de suas crueldades. Os romancistas põem a descoberto dimensões mais profundas nos discursos religiosos sem assumir compromissos dogmáticos, embora não ignorem a importância do dogma. Assim, comprometendo-se com todas as religiões e com nenhuma, os autores falam a respeito de deuses e deusas, de Deus, de demônios, de guerra, paz, felicidade, céu, Nirvana, morte, vida, doença, saúde, etc. Afinal de contas, as religiões são mundos que construímos usando palavras que portam sonhos, temores, esperanças, justiça, amor, etc. Shafique Keshavjee descreve o diálogo inter-religioso com base num conto sobre Deus e as religiões, cujo propósito era dar a um rei elementos que lhe permitissem escolher uma religião para seus súditos. Também viajamos com Théo para o mundo de centros religiosos criado por Catherine Clément. Várias interpretações e sugestões terapêuticas para a doença incurável de Théo são oferecidas pelas diversas religiões. Finalmente, com o Livro das Religiões, escrito pelo autor de O Mundo de Sofia, acrescentamos um nó a mais à "teia", só a fim de criar mais um "buraco": "Quem sou eu? De onde eu vim? Para onde irei?" Todas estas são perguntas com base nas quais Gaarder e seus co-autores descrevem a história das religiões. De minha parte, participo de um lugar não autorizado pelos romancistas cujas obras apresento de forma resumida.

Palavras-Chave: Romance; Religiões; Ética; Diálogo; Ambiguidade.


Aquém da Essência e da Transcendência

Num instigante texto sobre os limites da ciência e a crise da modernidade, o teólogo evangélico-luterano Vítor Westhelle reúne argumentos distintos do de Boaventura de Souza Santos para alcançar conclusões semelhantes sobre saberes ignorados, que são saberes também dominados ou subjugados. Vejamos alguns de seus argumentos, que se orientam, a meu ver, pela concepção de que nos vemos pelos olhos dos que nos viram, isto é, há um princípio Európico que dissimula os limites da modernidade , os quais, por extensão não seriam os limites da ciência? A pergunta não foi feita pelo autor do texto que estamos comentando. Responsabilizo-me por ela como tentativa de fazer nexos entre a pergunta do texto e de outros autores com os quais estamos dialogando.


SACRIFÍCIO E FUNDAMENTALISMO: ANÁLISE DE UM CONFLITO RELIGIOSO NA ESFERA PÚBLICA ESTATAL

 UM ESTUDO EXPLORATÓRIO

Ou vocês estão conosco ou estão contra nós.

W.W Bush

Os frigoríficos sacrificam animais; nós os sacralizamos.[1]

O presente Relatório reflete a pesquisa sobre os conceitos Sacrifício e Fundamentalismo, com o objetivo de compreender um conflito religioso e político que se expressa em nosso país de forma cada vez mais violento no espaço público. O referido conflito se manifestou nos últimos anos aqui no Rio Grande do Sul com a promulgação da Lei de Proteção dos Animais, a qual, no fundo incidia sobre sacrifícios de animais em templos de religiões de matriz africana. Em 2015, a deputada estadual Regina Becker Fortunati (PDT), evangélica, retoma a discussão sobre a proibição de sacrifício de animais em terreiros gaúchos. Ela queria suprimir a cláusula que impedia que a Lei de Proteção dos Animais fosse estendida aos templos onde há sacrifico de animais. O Projeto de Lei de 21/2015, 03/02/2015, foi arquivado pela Assembleia Legislativa Gaúcha já nos debates da Comissão de Constituição e Justiça, depois de uma grande manifestação pública do povo de terreiros. A Assembleia Gaúcha arguiu a inconstitucionalidade com base no Artigo V da Constituição Federal.


Pentecostalismo clássico no Brasil: 

adaptação e preservação de princípios 

Resumo: A universalização de uma religião em novos contextos traz em seu bojo a diferenciação entre adaptação e preservação de princípios, que dependem das condições políticas, econômicas, sociais e culturais. Segundo conceitos de Clifford Geertz, que nos servirão de aporte teórico neste artigo, a universalização de uma religião preserva aspectos doutrinais centrais independentemente do contexto, mas se adapta de forma diversificada em direções distintas, inclusive contraditórias e ambíguas. Assim, o presente artigo, um recorte de uma tese de doutorado, busca compreender o pentecostalismo clássico assembleiano brasileiro, mais que centenário, a partir do eixo da doutrina e de sua flexibilidade no meio cultural ainda marcado pela pobreza.

Palavras-chave: Pentecostalismo clássico; Universalização; Doutrina; Adaptação.



Protestantismo e Transformação Social 

O presente trabalho está sendo pensado com o um ensaio onde se pretende refletir sobre as formas possíveis de correspondência entre a reflexão sociológica de Max Weber e a teoria de Gramsci. 

Nesta perspectiva, o trabalho se limitará a reproduzir, de forma sucinta, algum as categorias sociológicas destes dois pensadores, na tentativa de, a partir delas, dar alguns passos iniciais em direção a uma formulação de problemas a serem enfrentados no estudo sociológico da religião, mais especificam ente do protestantismo no Brasil. Em outras palavras, pretende-se analisar a função transformadora ou legitimadora da ordem estabelecida de determinadas ideias comuns aos ramos principais do protestantismo brasileiro.


Fetichismos e o culto do homem abstrato

A análise do fetichismo, referido neste artigo, pauta-se pela crítica marxiana ao protestantismo como 'culto do homem abstrato'. Desta forma, a abordagem do fetichismo da mercadoria, do dinheiro e do Capital caracteriza o protestantismo alemão como a religião que melhor se adequou ao modo de produção de mercadorias, visibilizando ou ocultando a divisão do trabalho social e a consequente exploração da classe trabalhadora em seus conflitos com os donos do Capital. Como a análise do fetichismo do Capital é um tema muito abrangente em Marx, vamos delimitar o tema a aspectos de O capital - Livro I e sua recepção na América Latina por parte de teólogos da libertação.

Palavras-chave: Protestantismo; Fetichismo; Homem Abstrato. 


Resenha

ALVES, Eduardo Leandro. A Sociedade Brasileira e o Pentecostalismo Clássico - Razões Socioculturais entre a Teologia Pentecostal e a Religiosidade Brasileira. Rio de Janeiro: CPAD, 2021.


Após Jesus falar em público através de parábolas, ele fica sozinho com os seus seguidores mais próximos e lhes revela um segredo: a vocês, que estão próximos de mim, foi dado o mistério do Reino de Deus; aos de fora, tudo acontece em parábola. Esta dupla estratégia foi revelada após contar a parábola do semeador, conforme a qual as sementes jogadas a esmo, parte delas cai à beira do caminho e vindo as aves as comeram; outra parte das sementes caiu em solo pedregoso; logo nasceram, mas morreram por falta de terra; uma parte das sementes foi jogada entre espinhos; os espinhos cresceram e as sufocaram. Por fim, outra parte caiu em terra fértil e produziu muito frutos, conforme o Evangelho de Marcos, capítulo quatro.

Continua...


Resenha: Rosa Luxemburgo e a reinvenção da política

Resenha do livro: OUVIÑA, Hernán. Rosa Luxemburgo e a reinvenção da política. Uma leitura Latino-americana. 1. ed. São Paulo: Boitempo; Fundação Rosa Luxemburgo, 2021. 

Isabel Loureiro, professora aposentada do departamento de Filosofia da Unesp, colaboradora da Fundação Rosa Luxemburgo em São Paulo faz a apresentação da Edição Brasileira. Em sua apresentação destaca que o professor de ciência política na Universidade de Buenos Aires e militante socialista é um profundo conhecedor dos movimentos sociais da América Latina e um talentoso educador popular. O texto de Hernán não é uma reprodução do passado das lutas políticas de Rosa Luxemburgo, mas um leitora partir de sua militância e tendo em vista questões atuais de nosso continente latino-americano. Ressalva na militante e teórica Rosa sua dialética"entre reforma e revolução, entre partido e classe, base e liderança, autonomia das massas, defesa do vínculo indissociável entre democracia e socialismo." Tais temáticas se mostram atuais para o nosso contexto latino-americano, mesmo que a questão feminista para Rosa não se colocava como se apresenta hoje. No entanto, a presença de uma mulher, militante e teórica num campo político, assemelha-se a uma ave rara na Social-Democracia europeia das primeiras décadas do século XX,profundamente marcada pelo patriarcalismo.


Protestantismo à Brasileira:

Vale Três Forquilhas

Aprendemos da teoria do conhecimento a necessidade de falar do lugar de onde escrevemos ou de manifestar abertamente o nosso ponto de vista. E o lugar, nesse caso, é geográfico e existencial. Sou parte do objeto de estudo. Em outras palavras, sou sujeito e objeto da Cultura Popular e do Imaginário Religioso do Vale Três Forquilhas sobre os quais vou escrever. Não posso negar que minha experiência de vida influencia o meu conhecimento sobre a construção que faço da realidade. No entanto, ao admitir tal pressuposição, posso fazer um exercício crítico de um olhar de fora, consciente de que o interno e o externo são distintos, mas não separados. Com esses olhares, minha posição se torna "mais pluralista, respeitosa, aberta, humilde e crítica daquilo que reconhecemos, valorizamos e apreciamos como conhecimento". Por essa razão, inicio com comentários sobre experiências que me contaram.


DESTITUIU DE SEUS TRONOS OS PODEROSOS - LUCAS, 1,52

CÂNTICO DE MARIA - Obras Selecionadas, V. 6. Lutero.


Destacamos do comentário de Lutero sobre o Cântico de Maria alguns trechos que permitem uma leitura dos acontecimentos de hoje, especialmente no campo da política. Não vamos nos deter em comentários extensos porque vemos o leitor e a leitora como pessoas sábias.

Lutero escreve ao destinatário: Jesus - Ao Sereníssimo e Ilustríssimo Príncipe e Senhor, Senhor João Frederico, Duque de Saxônia, Landgrave e Margrave de Meissen, meu Clemente Senhor e Patrono. Vosso submisso capelão D. Mart. Lutero

Uma parábola. "Um assaltante assalta um cidadão e tu te pões a caminho com um exército para castigar a injustiça e oneras o povo inteiro com impostos - quem causou maior prejuízo: o assaltante ou o príncipe? Davi fez, muitas vezes, vistas grossas quando não podia castigar sem prejuízo para os outros. Assim deve proceder qualquer autoridade. ( p. 59)

Esta obra e as subsequentes são fáceis de entender a partir das duas anteriores. Pois (Deus) destrói os sábios e presunçosos em seus próprios desígnios e intentos, nos quais confiam e com os quais tratam arrogantemente os tementes a Deus, que têm que sofrer injustiça e cujos pensamentos e direito têm que ser condenados, como ocorre, com maior frequência, por causa da Palavra de Deus. Da mesma forma, destrói os poderosos e grandes e os destitui de seu poder e autoridade em que confiam, exercendo sua arrogância contra os inferiores e os humildes piedosos, que têm que sofrer da parte deles danos, dores, morte e toda a sorte de maldades. E assim como consola os que precisam sofrer injustiça e desonra por causa de seu direito, da verdade e da Palavra, assim também consola aqueles que têm que sofrer danos, dores, morte e toda a sorte de maldades. E assim como os que precisam sofrer injustiças e desonra por causa de seu direito, da verdade e da Palavra, assim também consolo aqueles que têm que sofrer danos e males. Isso tudo, porém, tem que ser reconhecido e aguardado na fé. Pois não destrói os poderosos tão rapidamente como merecem; deixa-os por algum tempo. Até que seu poder chegue ao auge e ao extremo. Então Deus não o sustenta; ele também não consegue sustentar a si mesmo e assim se desvanece em si mesmo sem qualquer barulho e estardalhaço. Então se erguem os oprimidos igualmente sem estardalhaço, pois o poder de Deus está neles. Este subsiste somente quando aquele desapareceu. ( p. 64-65)

Nesse caso destacamos o reconhecimento de que o poder de Deus está nos oprimidos.

Nota, porém, que ( Maria) não diz que ele irá destruir os tronos, mas que derruba deles os poderosos. Também não diz que deixa os humildes na humildade, mas que os exalta. ( p. 85)

Ora, nos assuntos divinos ocorre que sábios e soberbos presunçosos normalmente se associam aos poderosos, instigando a esses contra a verdade, como está escrito no Salmo 2,2: "Os reis da terra se ergueram, e os príncipes conspiraram contra Deus e seu Ungido", etc. ( p. 65) Assim o direito e a verdade sempre têm que ter simultaneamente contra si os sábios, poderosos e ricos, ou seja, o mundo com sua força máxima e suprema. Por isso e Espírito Santo os consola pela boca dessa mãe para que não se enganem nem se atemorizem.... ( p, 65). (...) Príncipe é ave rara no céu - Rico cá, pobre lá, referindo-se em nota ao texto de Lucas 16, 19 ss.

"E exaltou os que estão por baixo". Lucas, 1, 52.

Quando digo "os que estão por baixo", isto não significa simplesmente "os humildes", mas penso em todos aqueles que nada valem perante o mundo e que são absolutamente nada. (....) Tudo isso foi dito para consolo dos sofredores e terror dos tiranos, se acaso tivéssemos suficiente fé para acreditá-lo. (p.66)

OS HUMANOS, PORÉM, JULGAM SEGUNDO A APARÊNCIA: POR ISSO ERRAM COM FREQÜÊNCIA. ( p. 67)


Compilação - Dr. Oneide Bobsin.

LUTERO, Martinho - Obras Selecionadas. Volume 6. São Leopoldo: Editora Sinodal; Porto Alegre : Concórdia Editora, 1966.


CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

UMA HÓSPEDE IMPERTINENTE


A implementação de uma cátedra em Ciências da Religião por volta de 1980, na Faculdade de Teologia, que antecedeu a Escola Superior de Teologia, sinaliza que esta área do saber, filha do iluminismo e da Teologia, encontra um espaço fecundo e aberto para a descrição e explicação dos fenômenos religiosos na perspectiva do diálogo entre saberes distintos, quer acadêmicos ou confessionais.

Os estudos das religiões são bem anteriores à institucionalização da Ciências da Religião na Europa e nos Estados Unidos a partir do século XIX. Cem anos após sua institucionalização, Ciências da Religião passa a ser um componente curricular na Faculdades EST. O presente e-book comemora os 40 anos de ensino, pesquisa e extensão em diálogo crítico com a teologia.

Acesso pelo Link > Biblioteca Digital > Livros Digitais.


2020, o ano que não terminará tão cedo...

Comunidade Cristã e Comunidade Civil - Por Karl Barth

Dai, pois, a Deus o que é de César e, o que é de César, a Deus. Conscientemente, fiz uma inversão dos termos de Mateus 22.21 para caracterizar o pensamento fundamentalista e religioso que grassa em nosso mundo e faz avanços no Brasil.

Para questionar a inversão dos termos da palavra de Jesus, transcrevo a seguir alguns parágrafos do Teólogo protestante Karl Barth (1886-1968). Os textos citados encontram-se na obra Dádiva e Louvor (2006). Teólogo suíço, Barth propõe 'Comunidade Civil' como sinônimo de Estado. Vejamos algumas teses da sua palestra proferida em Berlim, na Alemanha, em 1946.

Sob 'Comunidade Cristã', entendemos o que normalmente se entende por 'Igreja' e, sob 'Comunidade Civil', aquilo que normalmente se chama 'Estado'. A utilização do termo 'comunidade' para caracterizar ambas as grandezas quer indicar a a relação e a ligação positiva existente entre as duas (p. 189).

A 'Comunidade Cristã' (Igreja) é a entidade a congregar aquelas pessoas de um lugar, de uma região, de um país, que estão especialmente convocadas dentre as demais como 'cristãs' e como tais reunidas pelo reconhecimento de Jesus Cristo e no intuito de professá-lo. A causa, o sentido e a finalidade dessa 'reunião' (ecclesia) é a vida em comum dessas pessoas em um Espírito Santo, isto é, na obediência àquela Palavra de Deus em Jesus Cristo, que todas elas já ouviram e que todas novamente desejam e precisam ouvir (p. 289).

Se olharmos da Comunidade Cristã para a sociedade civil, percebemos a diferença que ali os cristãos não mais estão entre si como tais, mas na companhia de não-cristãos (ou de cristãos duvidosos). A Comunidade Civil simplesmente abrange todas as pessoas da respectiva área. Concomitantemente, ela não tem uma consciência comum a todos sobre a sua relação com Deus. Esta, portanto, não pode constituir um elemento da ordem de direito nela instituída e válida. Em suas questões, não se pode apelar para a Palavra de Deus ou para o Espírito de Deus. A Comunidade Civil é espiritualmente cega e ignorante. Ela não tem fé, nem amor, nem esperança. Ela não tem confissão, nem mensagem. Nela não se ora e nela ninguém é irmão ou irmã do outro (p. 290).

Não existe, portanto, nenhum Estado cristão correspondente à Igreja Cristã, nenhuma réplica da Igreja na esfera política, pois, mesmo que o Estado seja efeito de disposição divina, mesmo que ele seja a forma em que se apresenta uma daquelas constantes da providência divina e da história do mundo por ela regida no Reino de Cristo, isto não implica que Deus se revele, seja crido e reconhecido em uma comunidade estatal em si (p. 296).

Aquilo de próprio com que ela entra nessa arena tampouco será direta e simplesmente o Reino de Deus. A Igreja chama à lembrança o Reino de Deus, mas isto não significa que ela espera do Estado que ele vá se transformando no Reino de Deus. [...] No Reino de Deus, não há Legislativo, nem Executivo, nem Judiciário. A Comunidade Civil em si, a Comunidade Civil neutra, pagã, ainda ou novamente ignorante, nada sabe do Reino de Deus (p. 301).

Na área da Política, a Comunidade Cristã se encontra como Comunidade Cristã e, portanto, a se empenhar e lutar pela justiça social. Na opção entre as diversas possibilidades socialistas (social-liberalismo, cooperativismo, sindicalismo, livre-monetarismo, marxismo moderado ou radical?), ela, em todos os casos, fará aquela escolha da qual julga poder esperar o máximo de justiça social, relegando para o segundo plano todos os demais critérios (p. 305).

Barth era membro da Igreja Confessante, que protestou contra o governo nazista, não por ser governo, mas por ser governo que ocupa o lugar de Cristo na fé. Vejam um trecho da Declaração Teológica de Barmen:

A Escritura nos diz que, segundo disposição divina, o Estado tem a incumbência de cuidar da justiça e da paz dentro do mundo ainda não redimido, no qual também se encontra a Igreja, segundo o critério do discernimento humano e da capacidade humana, mediante ameaça e uso da força. Com gratidão e reverência perante Deus, a Igreja reconhece a bênção dessa sua disposição. Ela chama à lembrança o Reino de Deus, o mandamento e a justiça de Deus e, concomitantemente, a responsabilidade dos governantes e governados. Ela confia na e obedece à força da Palavra, mediante a qual Deus sustenta todas as coisas.

Continuo com o meu lema de Pastor e Professor de Ciências da Religião:

DEUS NÃO É RELIGIOSO. GRAÇAS A DEUS!


Compilação - Oneide Bobsin. Últimos dias de 2020, ano que não terminará tão cedo.

Texto Publicado em: Jorev Luterano - Janeiro/Fevereiro 2021

P. Dr. Oneide Bobsin | Docente na Faculdades EST, em São Leopoldo/RS


MAX WEBER COMO 'TEÓLOGO': LEITURA TEOLÓGICA DA ÉTICA PROTESTANTE 

Este artigo procura destacar como a obra da sociologia religiosa de Max Weber estabelece diálogo entre Sociologia e Teologia. Ressalta recepções e críticas à obra weberiana no universo teológico. Centra as análises na obra 'Ética protestante e o espírito do capitalismo'. 


Palavras-chave: Max Weber, ética protestante, racionalização, tipos ideais.


Luteranos em casa, na igreja e na política

Não temos acesso à realidade se não pela construção social interessada  que fazemos dela. Por isso, jamais conseguimos fotografá-la, congelando-a. Lembrando a imagem do espelho embaçado dos tempos do apóstolo Paulo, podemos dizer que sempre vemos em parte. O/a leitor/a está diante de um resultado de exercício de pesquisa social feito por estudantes do Seminário de Aprofundamento Teológico sobre Antropologia do Protestantismo Brasileiro, da Faculdade de Teologia da EST. O questionário que serviu de técnica para colher os dados pergunta por dados de identificação, forma de ingresso na IECLB, obrigações familiares, aborto, questões teológicas, comunhão e exclusão e, por fim, participação cívica e sociopolítica. Os dados são apresentados na mesma estrutura do questionário, seguido de comparações com uma pesquisa realizada pelo ISER entre evangélicos no Rio de Janeiro. Os resultados são surpreendentes.


Sociabilidade Juvenil:

contexto religioso e sua inserção social

Este texto discute a relação entre os processos de sociabilização juvenil, mediados por quadros referenciais religiosos, definidos no âmbito da ética protestante-luterana (fundamento confessional da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil) - e as implicações destes processos na construção de identidades e subjetividades juvenis. Apresenta os principais resultados da pesquisa nacional sobre o perfil do/a jovem luterano/a da IECLB, consolidando, pela primeira vez, um banco de dados e de informações sobre este público, podendo ser referência aos agentes sociais interessados em pensar a sociabilidade juvenil no amplo conjunto das ações emancipatórias.

Palavras-chave: Juventude luterana; Religião; IECLB. 


Luteranos na Ética Protestante

Max Weber apresenta um novo sentido dado ao termo Beruf - vocação - por parte de Lutero. Viver o chamado divino no exercício profissional foi considerado por Weber como um dos elementos - ao lado da predestinação - que provocaram o processo de racionalização ou desencantamento (Entzauberung) do mundo. Situado nesta problemática, o texto faz uma comparação entre o pensamento de Lutero e Calvino, graça e "espírito do capitalismo", respectivamente.

Palavras-chave: Beruf/vocação; "espírito" do capitalismo; graça e trabalho.



IGREJA E DITADURA CIVIL-MILITAR: VOZES DISSONANTES

O presente texto rediscute as motivações de ordem política que levaram a Federação Luterana Mundial (FLM) a transferir sua Assembleia de Porto Alegre para Evian, França, em 1970. Entre as motivações da transferência estava a falta de percepção, por parte da direção da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), da violação dos Direitos Humanos pelo governo autoritário civil-militar, especificamente no período considerado mais intenso de repressão, entre 1969-1974. Além do resgate do debate sobre o tema, o texto integra uma análise de entrevistas feitas com pessoas de confissão evangélico-luterana que lutaram pela redemocratização do Brasil, sofrendo com o silêncio de sua igreja e com a opressão do Estado. 

Palavras-chave: Ditadura civil-militar. Direitos Humanos. Memória. Verdade.


A REALIDADE DO ENSINO RELIGIOSO NO ESTADO DO AMAPÁ: PROPOSTA DE CRIAÇÃO DO PRIMEIRO CURSO DE LICENCIATURA EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO 

O presente trabalho tem por objetivo trazer reflexões sobre a realidade do Ensino Religioso no estado do Amapá, bem como a proposta de criação do primeiro curso de licenciatura em Ciência da Religião no estado. Trata-se do resultado de um estudo exploratório, de natureza qualitativa, que adotou a pesquisa bibliográfica e a análise documental como forma de investigação. No primeiro momento, abordamos os desafios e as dificuldades da formação de professores/as de Ensino Religioso no estado. Em seguida, apresentamos uma análise sucinta da proposta de criação do curso de licenciatura em Ciência da Religião pela Universidade Federal do Amapá (UNIFAP), levando em consideração o histórico da proposta, seus objetivos, concepção epistemológica, dificuldades encontradas e a importância desse curso para a sociedade amapaense. 

Palavras-chaves: Ciência da Religião. Ensino Religioso. Religião e Educação. Amapá.


Teologia da Prosperidade ou Estratégia de Sobrevivência

O título provocativo deste artigo nos remete a uma problemática que transcende os limites de um trabalho que se encontra numa fase exploratória de pesquisa de campo. Por esta razão, satisfaço-me com uma descrição genérica de aspectos do discurso da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) sobre a teologia da prosperidade, que predispõe os excluídos a buscar a manipulação da religião num confronto com formas religiosas que se desenvolveram num período em que não se colocava a ideia de mercado de forma tão determinante quanto hoje. Segue-se a essa descrição o levantamento de pistas teóricas que intentam desvendar o nexo entre religião e estratégia de sobrevivência.


"Não há pecado ao sul do Equador": 

das origens subterrâneas da ideologia e da subversão

Autor: Vítor Westhelle

Oneide Bobsin (1997) faz trabalho de toupeira: explora subterrâneos. O incrível mamífero por seu habitat dispensa de visão, mas possui ouvidos internos capazes de captar como radar ressonâncias imperceptíveis a seres humanos. Bobsin lê o "outro lado da modernidade" seu lado obscuro, como quem detecta por ressonância o lado oculto da lua. Daí seu fascínio pelo oculto que os sincretismos da religiosidade popular mantêm fora do campo de visão das racionalidades eclesiais e acadêmicas bem-comportadas e burocráticas do pensamento abissal (Boaventura de Sousa Santos) excluindo saberes que a visão não controla.


A imagem do Cruzeiro resplandece

 Filipenses 2.5-11 e o hino nacional brasileiro

Esta pregação realizada na capela da Escola Superior de Teologia da IECLB, em São Leopoldo, propõe um inusitado e desafiador paralelo entre o "hino cristológico" da Carta do apóstolo Paulo aos Filipenses, que acentua a dimensão de esvaziamento do Cristo que se doa, e o hino nacional brasileiro, que exalta as grandezas da Pátria. Neste ano de festejos pelos 500 anos de Brasil, o evangelho denuncia a escravidão e anuncia novos caminhos de promoção da vida. 


Mobilidade religiosa no Brasil

- conversão ou trânsito religioso?

O presente artigo enfoca o crescente pluralismo religioso no Brasil e os fluxos de mobilidade religiosa contemporânea e suas motivações. Além de uma descrição do campo religioso brasileiro a partir dos dados e estudos empíricos disponíveis, descrito por muitos como "mercado religioso", trata-se de uma análise dos modelos teóricos preponderantes no Brasil, tanto em sua conexão com o discurso internacional, quanto em sua especificidade. As reflexões giram em torno da questão básica do artigo: pode-se falar com propriedade de "conversão" no Brasil?

Palavras-chave: Pluralismo religioso. Conversão. Campo religioso brasileiro.


PERSPECTIVAS DA TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO : IMPASSES E NOVOS RUMOS NUM CONTEXTO DE GLOBALIZAÇÃO

Em linguagem sucinta, faz-se uma revisão dos últimos 30 anos na teologia latino-americana, colocando assim as perspectivas desde onde pensar o momento atual. Este é analisado também sucintamente, mas com grande perspicácia. O objetivo é auscultar continuidades e descontinuidades de um pensar teológico que se quer histórico e historicamente mordente, dentro de uma situação histórica igualmente marcada por continuidades e descontinuidades.

Palavras-chave: Teologia da libertação; Teologia latino-americana;


Protestantismo em Marx - Economia e Teologia

Problematizaremos no presente artigo a contradição marxiana entre a afirmação universalizante sobre a religião como ópio do povo e análise favorável aos textos de Martim Lutero sobre comércio e contra a usura. Se Lutero e o luteranismo alemão sofreram duras críticas de Marx pelo fato de a revolução ter nascido na Alemanha na cabeça de um monge, Lutero, e mais tarde renovada pela cabeça de um filósofo, Hegel, tornando-se pouco prática, a mesma avaliação não foi sustentada por Marx a respeito do reformador como o "primeiro economista alemão". O texto tratará, pois, da relação entre teologia e economia em obras de Marx que se reportam a Martim Lutero.

Palavras-chave: Protestantismo; Karl Marx; Teologia; Economia; Martim Lutero.


AS FUNDAÇÕES DO PENSAMENTO POLÍTICO MODERNO


No prefácio de sua extensa obra, Quentin Skinner, professor de ciência política na Universidade de Cambridge, apresenta os três objetivos do livro que estamos resenhando. Em primeiro lugar, ele traça um quadro panorâmico acerca dos textos referidos pelos principais pensadores políticos e teológicos do fim da Idade Média e começo da era Moderna. Textos teológicos desse período são usados como fontes para a elaboração de sua teoria a respeito dos fundamentos do pensamento político moderno. Além de autores católicos, textos de Lutero e Calvino, entre outros, são apresentados como fundamentos do pensamento político em Estados modernos.


Tendências religiosas e transversalidade: Hipóteses sobre a transgressão de fronteiras

Um período histórico de profundas transformações incide também sobre o fenômeno religioso. O artigo reflete sobre as reconfigurações dos mapas das religiões com o auxílio da noção de "transversalidade", visando "captar a dinâmica da migração de idéias e crenças religiosas distantes de seu contexto, destradicionalizadas, que interagem com religiões constituídas, aprofundando assim mudanças mútuas". O foco é a religião cristã no Brasil, e a pergunta por uma matriz religiosa subjacente às denominações religiosas é testada principalmente nos fenômenos do catolicismo carismático e do neopentecostalismo com sua "teologia da prosperidade".


VACAS E TOUROS DE BASÃ

Em tempos de Pandemia do Covid-19 a expressão "imunidade de rebanho" é usada seguidamente como uma possível precaução por meio de um contágio coletivo que viesse minorar a dor de mais de 150 mil mortos, o que é um grande engano buscando esconder o crime de responsabilidade do Governo Federal operado por meio da redução e desarticulação das políticas públicas.

A linguagem bovina do Governo Bolsonaro se estampa em vários momentos como se o povo brasileiro fosse um rebanho. Naquela reunião de Governo em abril, o Ministro do Meio Ambiente sugeriu que o momento da pandemia era oportuno para "passar a boiada", ou seja, desregulamentar ao máximo as leis de proteção enquanto a mídia ocupava o povo com a pandemia. Recentemente, a Ministra da Agricultura chegou ao cúmulo do ridículo ao, dizer diante de deputados e deputadas, que os incêndios no Pantanal seriam menores se lá existissem bois pastando. Com esta visão ela se denunciou ao colocar bois no lugar de matas e pessoas. Já está mais do que provado por cientistas, ambientalistas e por alguns fazendeiros que a mata em pé é mais lucrativa do que ela queimando para futuras pastagens. Com isto ela não conseguiu esconder que os incêndios são aprovados pelo Governo Federal, dos Estados da região pantaneira. Neste sentido, a seca foi uma oportunidade para apagar o fogo com gasolina. O setor atrasado do agronegócio e o Governo Federal juntaram-se bovinamente para aumentar o rebanho, seja ele de animais ou de bípedes empobrecidos.

A Técoa de Amós

Tenho certeza que a maioria das pessoas que leem a Bíblia, ou que escutam seus textos em celebrações e cultos, não se sentirão à vontade com a dura crítica do profeta Amós aos governantes de sua época, a quem o profeta chamava de "Casa de Israel". Os profetas não são videntes, embora anunciem um novo tempo de paz e de justiça. Como pesquisador de igrejas e de religiões, não percebo nos cultos e missas televisionados alguma referência às criticas dos profetas às injustiças sociais. Igreja e religiões, que pactuam com o presente, vedam aos seus fiéis textos que questionam o status quo. Como estou escrevendo no Dia da Padroeira do Brasil para os católicos e católicas, poderia fazer uma aposta: na leitura do Cântico de Maria, conforme Lucas 2, não se comentam os versos 51 e 52. Sua mensagem é subversiva por louvar que o Deus misericordioso que "depôs poderosos de seus tronos, e a humildade exaltou. Cumulou de bens os famintos e despediu ricos de mãos vazias". Certamente tais versos serão ignorados na interpretação. Por quê? Por que Maria, aquela jovem humilde, escolhida por Deus, reitera as palavras de Amós, Isaías e outros profetas. Não foi sem razão que num processo contra um profeta durante a Ditadura Civil-Militar (1964-1985), o texto de Lucas fora arrolado como testemunha de subversão.

Técoa dista nove quilômetros de Belém e Amós atua no período do tempo do rei Jeroboão (786-746 a. C.), época em que a paz está chegando ao fim. Deus chama Amós para denunciar as injustiças da "Casa de Israel", referência às lideranças do povo de Israel. Ele é um criador de gado, mas sua linguagem não é bovina. Foi chamado de sua atividade que lhe permitia autonomia para anunciar o fim de Israel e de sua elite. Também faz uma excelente leitura das ameaças da política internacional da época. Não é um profeta da corte, nem pertence a uma genealogia de profetas. Não tem o "rabo preso" com o governo e com as próprias pessoas de sua "classe".

Não muge com o gado que cria em pequena extensão, mas abre a boca para anunciar os oráculos divinos. Vejamos, então, algumas de suas críticas subversivas que anuncia um desastre para os poderosos e solidariedade para com as pessoas enfraquecidas pela injustiça:

Assim falou Deus: Pelos três crimes de Israel, pelos quatro, não o revogarei! Porque vendem o justo por prata e o indigente por um par de sandálias. Eles esmagam sobre o pó da terra a cabeça dos fracos e tornam tortos os caminhos dos pobres: um homem e seu filho vão à mesma jovem para profanar o meu santo nome. (Amós 2. 6-7)

Se a prostituição é vista como profanação do nome de Deus, a corrupção nos palácios também o é.

Proclamai nos palácios da Assíria e nos palácios da terra do Egito: dizei: reuni-vos nas montanhas de Samaria, e vede as numerosas desordens em seu meio, as violências em seus meios! Não sabem agir com retidão, - oráculo de Deus -aqueles que amontoam opressão e rapinas em seus palácios. (Amós 3. 9-10)

As palavras de Amós não se dirigem apenas aos governantes e seus agregados no suborno; também às mulheres de Samaria, as socialites da época, as palavras são duras:

Ouvi estas palavras, vacas de Basã, que estais sobre o monte Samaria, que oprimis os fracos, esmagais os indigentes e dizeis aos vossos maridos: Trazei-nos o que beber! O Senhor Deus jurou por sua santidade: sim, eis que virão dias sobre vós em que vos carregarão com ganchos e, o que sobrar de vós, com arpões. (Amós, 4. 1-2)

O profeta Amós não tem piedade com a hipocrisia das mulheres dos governantes da Casa de Israel, que será exterminada por causa do pecado da injustiça. Mas sua crítica vai ao fundamento da injustiça, a corrupção do culto.

Eu odeio, eu desprezo as vossas festas e não gosto de vossas reuniões. Porque, se me ofereceis holocaustos... não me agradam vossas oferendas e não olho para o sacrifício de vossos animais cevados. Afasta de mim o ruído dos teus cantos, eu não posso ouvir o som de tuas harpas! Que o direito corra como a água e a justiça como um rio caudaloso!" (Amós 5. 21-24)

As palavras de Amós são evidentes por si mesmas. Não carecem de explicações, mas de posicionamentos contra as injustiças e a favor dos fracos explorados pelas elites da "Casa de Israel", da "Casa de Brasília" e de tantas outras casas subordinadas e subornadas pelo capital, o senhor do mundo. Mas, o mais importante vem do profeta quando não poupa o culto; quando este se corrompe, a corrupção se torna a alma da vida e os governantes corruptos passam a mugir nos palácios. Enquanto ministros mugem, como vacas e touros de Basã, o profeta anuncia oráculos divinos.

Que o direito corra como a água e a justiça como rio caudaloso!

Palavra do Senhor. 


Dr. Oneide Bobsin

Pastor Evangélico-Luterano. Professor de Ciências da Religião. Coordenador Geral do periódico Protestantismo em Revista. Reitor da Faculdades EST (2007-2014). Membro da Comissão da Verdade/RS (2013-2014).

Blog: oneide-bobsin.webnode.com/



RESSURREIÇÃO - UM OLHAR DO IMPÉRIO


Podemos dar crédito a uma história vivida por um incrédulo? Parece que este é o drama do filme Ressurreição, cujo ator principal desempenha o papel de um militar romano sob as ordens de Pôncio Pilatos, governador instituído pelo Império Romano para controlar o povo judeu. Tanto o governador como o militar romano estão interessados em suas carreiras com afagos ao Imperador de Roma. O tribuno romano já tinha medalhas em razão das habilidades de sufocar revoltas de judeus. O filme começa com batalhas das quais surge como vencedor cruel. A relação entre o povo local e o Império fora marcada, como ainda hoje, pelas resistências.

Mas o Messias é um problema para as suas carreiras política e militar de ambos. Às vésperas da visita do Imperador, o governador está preocupado com fake news sobre a ressurreição do Messias crucificado. Para evitar revoltas da população, Pilatos incumbe um militar romano para investigar as notícias sobre a ressurreição do crucificado. A perseguição por meio de investigações mostra que o filme foge de tantos outros a respeito dos últimos dias de Jesus. Parece que estamos diante de um filme policial. A investigação do militar começa pelos guardas do sepulcro, que dormiram sob efeito do álcool facilitando o roubo do corpo de Jesus pelos discípulos. Não satisfeito com as respostas dos guardas, sendo que um deles alega fenômenos celestiais estranhos que possibilitaram a abertura do túmulo, o tribuno romano vai em buscas de outras respostas.

Assim para justificar seu status, interroga Maria Madalena e outra mulher idosa cega. Uma viu Jesus e outra ouviu a respeito de suas aparições pós túmulo vazio. Não se intimidam e confirmam a ressurreição ignorando a pressão do militar romano. 

Sob pressão do Império Romano, Pilatos exige de seu investigador militar uma averiguação das valas onde os corpos dos crucificados eram jogados. Mas não encontra o corpo com as marcas de perfuração de Jesus, cujas pernas não foram quebradas como era o costume romano. Como, no entanto, os corpos putrefatos se assemelham mostra para Pilatos um corpo que poderia parecer com o de Jesus. Ceticamente fazem de conta que encontraram o corpo.

Quando o fracasso da investigação era iminente, ele encontra o grupo de discípulos reunidos a portas fechadas. Arromba a porta e vê que Jesus está no meio deles. Lentamente larga a sua espada e esmorece com o olhar fixo em Jesus. Não acredita no que está vendo e sua investigação toma outro sentido. Não dá mais satisfação a Pilatos e, mesmo incrédulo, deixa de perseguir as pessoas que seguem Jesus e as acompanha com uma certa distância. A fé daqueles homens e daquelas mulheres sem referência social, longe do poder, lhe causa muita confusão. Parece crer, mas com muita dúvida. Não consegue ser como Tomé que apalpa os sinais da cruz. Sim, quem ressurgiu continua com os sinais da cruz.

Pilatos sente-se traído pelo tribuno romano e empreende uma busca através de um pelotão das forças armadas. O objetivo é prender os discípulos e também o tribuno que os acompanha. Mais um fracasso de Pilatos. O ajudante do tribuno encontra o grupo, mas é demovido da denúncia. O militar romano protege os discípulos ao demover o seu ajudante a não falar sobre o lugar onde os discípulos se encontram. Longe dos olhares do pelotão, o tribuno acompanha os discípulos e testemunha os milagres da pesca e vê Jesus caminhar sobre as águas. Depois deste convívio, o tribuno militar se despede de Pedro por meio de um forte abraço. Clavius( Joseth Fiennes) olha Pedro se afastando e este levanta a barra da calça e mostra a marca feita pela espada do tribuno. De fato, não foi uma facada "virtual". O sinal da violência no corpo de Pedro foi transformado em sinal de uma amizade nascida do perdão. Despedem-se.

O militar romano nunca encontrou o corpo de Jesus, pois ele está em todo o lugar, segundo um dos seguidores do Messias que debochava dele durante a investigação torturante. Talvez ele se visse como um militar fracassado aos olhos do poder, ao deixar Pilatos sem resposta e oscilante como o fora quando lavou as mãos diante do inocente. Alguns críticos de cinema veem a Ressurreição como um filme que merece muitas críticas. Como não sou crítico de cinema, considero-o relevante por colocar em tela um olhar de agentes do Império sobre o sumiço do corpo de Jesus. Arriscaria dizer que Kevin Reynolds, diretor do filme, privilegiou o ceticismo das autoridades romanas a respeito do messias crucificado. Parece esta ser a atitude mais constante dos agentes do Império diante da fé dos discípulos e das seguidoras de Jesus, cujo reino anunciado questionava o poder imperial. Como podemos ver hoje, o tempo não mudou a perseguição imperial aos seguidores do messias crucificado.

O filme Ressurreição poderia buscar um paralelo no sebastianismo submerso no Brasil. Dom Sebastião, rei de Portugal, foi morto na batalha de Alcácer-Quibir, em 1578, no Marrocos. Seu corpo não foi encontrado. Assim se desenvolveu a crença de que o rei voltaria para resolver as dificuldades de Portugal decorrentes daquele conflito. Essa crença na volta de Dom Sebastião apareceu no discurso de Antônio Conselheiro logo após a proclamação da República. Pregava que o rei português voltaria para reestabelecer a Monarquia. Mas ele não foi o único a querer resolver questões candentes com a volta de D. Sebastião. O messianismo no Brasil está submerso e desponta aqui e acolá. De tempos em tempos parcela da população vê em certas autoridades o messias que nos salvará de nossas contradições e da desigualdade social, bem como de tantas outras mazelas. Há muita gente que espera um salvador da pátria ou um messias que fará aquilo que é de responsabilidade nossa. Contudo, democracia não rima com messianismo. Messias crucificado, sim.

Voltando ao filme, os messiânicos de hoje no campo da política poderiam se inspirar no ceticismo do tribuno romano. Seria um avanço para a nossa ameaçada democracia. Outros, que seguem o Messias crucificado, tem razões diferentes do tribuno e de Pilatos, representantes do Império de todos os tempos que enchem as valas de pobres condenados ao sacrifício pela economia de Mercado, esta defendida pelos podres poderes de nossa República Federativa do Brasil.

A perseguição conduzida pelo tribuno militar imperial, que sonhava com um cargo em Roma, se deparou, por fim, com um grupo de seguidores escondidos, a portas fechadas. Surpreso, viu entre eles o corpo que procurava, ainda com os traços da tortura. Diante deste quadro o tribuno esmorece e abandona seu compromisso com o Império que, com todo o seu poder militar, não conseguiu prender Jesus à sepultura. Como disse um grande cantor brasileiro, cujo nome me escapa: Você me prende vivo, mas eu escapo morto, ou o contrário é mais condizente com o evangelho que destrói as fake news do poder.

Enquanto elas iam, eis que alguns da guarda foram à cidade e anunciaram aos chefes dos sacerdotes tudo o que acontecera. Estes, depois de se reunirem com os anciãos e deliberarem com eles, deram aos soldados uma vultosa quantia em dinheiro, recomendando: Dizei que os seus discípulos vieram de noite, enquanto dormíeis, e o roubaram. Se isto chegar aos ouvidos do governador, nós o convenceremos e vos deixaremos sem complicação. Eles pegaram o dinheiro e agiram de acordo com as instruções recebidas. E espalhou-se essa história entre os judeus até o dia de hoje. (Mateus, 28, 11-15)


A Reificação Da Religião: A Religião Na Sociologia

Sem desconsiderar a contribuição da Sociologia da Religião, o texto pretende problematizar tendências científicas que, ao analisarem a função social das religiões nas sociedades modernas, elaboram um conhecimento reificado dos fenômenos religiosos. Esta problematização só é possível a posteriori porque é próprio das ciências questionarem a si e a seus pressupostos. Nesta perspectiva, o texto problematizará pressupostos teóricos marxistas e positivistas, revelando, de certa forma, compromissos com uma visão de mundo que pretende ser universal, mas que ignora os seus limites históricos e se fecha em si. A coisificação das religiões, que reduz o outro, o estranho, ao igual a si, é um risco permanente da análise dos acontecimentos e dos fenômenos. Neste horizonte provocativo, a Sociologia da Religião, como campo aberto, autoriza-nos a perguntar pela religião da Sociologia. Desta forma, ela transcende a condição de objeto a que foi submetida.  

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DITADURA MILITAR, DIREITOS HUMANOS E IGREJA: SUBMISSÃO DEMAIS, RESISTÊNCIA DE MENOS

A transferência da Assembleia da Federação Luterana Mundial, órgão máximo do luteranismo, poucas semanas antes de sua realização em Porto Alegre em 1970, explica-se pelo contexto político da época. Comitivas de várias partes do mundo começaram um processo de boicote porque não queriam a presença do presidente da República em sua abertura. 

O General Presidente havia sido convidado para a Assembleia, mas sofreu um grande rechaço internacional. O motivo da transferência para Evian, na França, tinha relação com torturas e o desrespeito aos Direitos Humanos que a ditadura afirmava não existir. Também a direção da Igreja Evangélica de Confissão Luterana de então, anfitriã do evento, silenciava diante da violação dos direitos humanos por parte do regime civil- empresarial-midiático. 

O presente e-book é fruto de um projeto de pesquisa que entrevistou pessoas evangélico-luteranas que militavam na defesa dos Direitos Humanos e pela redemocratização do Brasil. São testemunhas de uma época que esperamos não se repetir, e que merecem ser ouvidas.

Palavras-chave: Ditadura Militar. Direitos Humanos. Igreja 

Link: https://www.est.edu.br/downloads/pdfs/biblioteca/livros-digitais/Ditatura_DH_Igreja_BOBSIN_PDFA_FINAL.pdf


O subterrâneo religioso da vida eclesial: escuta pastoral

O presente trabalho procura analisar a noção de subterrâneo religioso como prática corrente entre os grupos religiosos. O subterrâneo religioso se constitui como maneira de transgredir fronteiras normatizadas pelas quais os grupos sociais trocam economias simbólicas por meio de contrabandos que ocorrem a partir da vida experimentada cotidianamente, isto é, pelas necessidades dos grupos sociais em operacionalizar a fé em resultados práticos. Esse conceito é analisado em parte a partir da agregação de um subsídio empírico da religião submersa, por meio da metáfora do poço, e na perspectiva de uma moldura teórica atualizada, especialmente na metodologia da pesquisa social em conexão com a epistemologia.

Palavras-chave: Economia simbólica. Religião submersa. Subterrâneo religioso.



SEREMOS COMO DEUS - OS PASTORES DE TRUMP

No mês de fevereiro foi recebida, por autoridades brasileiras, uma comitiva de pastores dos Estados Unidos, conhecidos por "pastores de Trump", numa evidente referência a uma aliança entre evangélicos e o governo norte-americano. Por conta de lideranças evangélicas e agentes públicos trono e altar se abraçam, como não poderia acontecer num pais onde o Estado é laico.Mas o que dizem estes pastores? Para situar os leitores e as leitoras vou expor duas frases do pastor Victor Azevedo, que fundou a sua igreja e está nas redes sociais. Quando olho para Deus, sou tão justo que não me percebo inferior a ele. E a segunda frase, mais herética do que esta: Deus não me chama de Victor, ele me chama de Cristo. Negam a cruz.Sua mensagem não precisa de muita explicação. Tal pastor se coloca no lugar de Deus e no lugar de Cristo. Biblicamente, estamos diante de uma blasfêmia. Sim, se coloca no lugar de Cristo, mas não quererá ser crucificado em favor de nós.A tentação de querer ser como Deus vem de longe. Mas comecemos pelo que está mais perto. 

No final do século XIX, um pensador francês, Emile Durkheim, que criou a Sociologia, disse que no futuro o individualismo transformaria os homens e as mulheres em deuses ou deusas. Brinco com as letras para expressar a ideia da divinização das pessoas individualistas: dEUs. Eu sou Deus. Este tempo chegou a Brasília e a muitos outros lugares. Durkheim acertou em cheio: muitas pregações que se dizem cristãs aceitam a divinização do EU.Séculos antes Lutero comentou a queda dos seres humanos em Gênesis três. Ele disse que o diabo inverte as palavras de Deus. Exemplifica com o primeiro mandamento: Eu sou teu Deus, não terás outros deuses. Assim não podemos confiar na própria obra para que sejamos salvos. 

Lutero disse que invertem tudo, não importando o que Deus faz. O pastor Victor inverte a Palavra de Deus ao se colocar no lugar Dele e de Jesus.Se comeres da árvore, morrerás. Não, disse o diabo, não morrerás se comeres da árvore, mas serás igual a Deus. Por esta razão, Cristo chama o diabo pai da mentira, comenta Lutero.Costumo dizer nas aulas o que aprendemos da Reforma e o poder secular. Se uma igreja precisa do governo para a sua missão, ela não confia na Palavra de Deus. Se um governo precisa da igreja para governar, ele é incompetente. Colaboração entre Estado e Igreja está prevista na Constituição. Mas o caso acima comentado extrapolou a colaboração, por perverter a Palavra de Deus. Nunca seremos iguais a Deus. Mas a organização The Send Brasil, acha que sim. E muitas autoridades assim se portam dando um verniz religioso para a política neoliberal que só no ano passado subtraiu da Saúde mais de treze bilhões, seguindo a Emenda Constitucional 95, que anualmente retira investimentos das políticas públicas. Leiam capitulo vinte e três de Mateus.


O General e a Escrava - Reprise Atualizada 

A nossa Bíblia tem histórias que mereceriam estar entre os contos da literatura universal, e serem usadas em nossas salas de aulas e nos cultos. Infelizmente elas não são contadas como obras primas; poderiam ser transformadas em minissérie para a televisão, a fim de evitarmos a mediocridade das novelas da Rede Record, ligada à Igreja Universal. 

Vamos, pois, a uma destas tantas histórias - a cura do general Naamã, narrada no capítulo cinco do segundo livro dos Reis, Antigo Testamento. O General era um homem de confiança do Rei. Homem cheio de sucesso por suas incursões militares vitoriosas. Certamente coberto de medalhas. Mas por baixo de suas roupas de gala cheia de medalhas, sua pele estava tomada de lepra, num tempo em que não havia cura, como na época de Jesus. Cheio de glórias militares e condenado à morte, eis o seu grande dilema. Seu poder nada valia, como não vale nada em qualquer tempo.

Mas a cura esta à mão. Uma menina havia sido levada cativa pelo General num incursão militar. Ela havia se tornado escrava da mulher do militar, e dizia à patroa: Basta ele se apresentar ao profeta Eliseu, em Samaria, e será curado. Resistindo, pede licença ao seu rei, que faz as tratativas diplomáticas para não parecer uma declaração de guerra. Naamã obedeceu à menina escrava, certamente contra a sua vontade. A menina era de Samaria/Israel, terra onde o Deus cura sem cobrar, como em todo lugar, menos em algumas igrejas brasileiras.Sua comitiva, cheio de galas e presentes, chega à Samaria. Nem o rei o recebe nem o profeta Eliseu o toca. Este manda o seu criado dar um recado ao General. Ele fica indignado com esta recepção e se nega a mergulhar sete vezes no Jordão. Eliseu não deu conversa. O general desconsidera a ordem de Eliseu porque em sua terra tem rios melhores. Mas os seus comandados dizem ao comandante: Mergulha General! Mergulha, e são setes vezes!

Muitos evangélicos brasileiros foram se rebatizar no Jordão, e também políticos como o atual presidente. Mas nenhum deles recebeu a cura de Naamã, porque seus pastores trouxeram águas em garrafinhas e estão vendendo aos borbotões em seus templos da prosperidade, ganhando dinheiro e milhões de votos. Voltando ao texto bíblico, o General foi agradecer com toda a pompa a Eliseu, que rejeitou horarias e presentes. Eliseu nada quis. É de graça a cura. Então, o general pede para levar em seus animais sacos de terras de Samaria para a seu país. Lembrança de que Deus foi generoso. A história é mais cativante do que o meu texto. Leiam e tirem a suas conclusões.No entanto, fico a imaginar quanto os pastores midiáticos de nosso tempo cobrariam por aquela cura? Ganharia milhões ou bilhões, além de votos em seus candidatos. Eliseu nada cobrou. 

Quem vende a Graça cria desgraça. E como transformaria aqueles sacos de terra em toneladas e toneladas, que seriam vendidas em saquinhos em seus cultos, ganhando milhões para injetar em suas contas bancárias e em campanhas eleitorais. Vejo isto nos cultos que visito como pesquisador.Veja como continua a história no texto bíblico indicado! Corrupção e lepra não se separam quando a graça é barganhada. Agraciado por Deus, voltou para a caserna.

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